A revista satírica francesa de esquerda Charlie Hebdo, alvo nesta quarta-feira (7) de um atentado devastador com armas automáticas, reivindicava seu lado provocante e era alvo constante de ameaças desde que publicou em 2006 uma série de charges de Maomé que indignaram o mundo islâmico.
Após a publicação das controversas caricaturas do profeta, inicialmente divulgadas pela revista dinamarquesa Jyllands-Posten, a redação da Charlie Hebdo vivia em estado de alerta.
"Havia ameaças permanentes desde a publicação das caricaturas de Maomé", declarou o advogado da revista, Richard Malka, após o ataque desta quarta-feira por desconhecidos que abriram fogo com armas automáticas e que custou a vida de várias das figuras mais famosas da redação, incluindo Cabu, Charb, Wolinski e Tignous.
"Vivíamos há oito anos sob ameaças, estávamos protegidos, mas não há nada que possa ser feito contra bárbaros que invadem com kalachnikovs", acrescentou o advogado. "É uma revista que apenas defendeu a liberdade de expressão, ou simplesmente a liberdade", disse.
A última edição da revista, lançada nesta quarta-feira, inclui na capa uma caricatura do escritor Michel Houllebecq, autor do polêmico livro "Submissão" publicado neste mesmo dia e que imagina uma França islamizada.
"Em 2015 perco meus dentes, em 2023 faço o Ramadã", afirma a caricatura do escritor na capa da Charlie Hebdo, cujos números se esgotaram nas bancas logo depois do atentado que deixou a França em estado de comoção. Outro desenho mostra o cartunista dizendo: "Em 2036, o Estado Islâmico entrará na Europa".
Após a divulgação em 2011 de uma edição que fazia piada com a sharia, ou lei islâmica, um atentado com coquetéis molotov incendiou parte da sede da revista no distrito 11 do leste de Paris.
Ameaça permanente
Apesar disso, a Charlie Hebdo permaneceu fiel a sua linha de conduta e dizia não ser inimiga do Islã. "Há provocação, como fazemos todas as semanas, mas não mais contra o Islã que com outros temas", afirmou em 2012, após o atentado incendiário, seu diretor de publicação Charb, que morreu no ataque desta quarta-feira.
Após o primeiro atentado de 2011, Charb e outros membros da redação viviam sob proteção policial e sua sede era alvo de custódia pela polícia francesa.
"Prevíamos o pior, e o ministério do Interior havia avaliado as ameaças a tal nível que vivíamos sob proteção permanente, mas não foi suficiente", disse o advogado Richard Malka.
O equivalente na França à revista argentina "Humor" ou à espanhola "El Jueves", a Charlie Hebdo foi fundada em 1970, quando substituiu "Hara Kiri", semanário que reivindicava seu tom "estúpido e malvado", fundado por Cavanna - falecido no ano passado - e Georges Bernier.
A linha inicial era anticlerical e denunciava a ordem burguesa, mas buscava, principalmente, fazer seus leitores rirem com um humor corrosivo implacável.
Em 1970, misturando o drama de uma discoteca no qual 146 pessoas morreram com o falecimento de Charles De Gaulle, a revista intitulou "Baile trágico em Colombey (a localidade onde o general morreu): um morto". O governo proibiu imediatamente a difusão da Hara Kiri.
A redação optou, então, por uma nova fórmula editorial que combinava quadrinhos com posições parecidas com as da Hara Kiri, mas sob um novo título, Charlie Hebdo, em referência a Charlie Brown, o Charlie dos Peanuts, as famosas tirinhas americanas de Charles Schulz.
A partir de então, cultivou uma linha editorial irreverente com uma ótica de esquerda radical forjada durante a presidência de Valéry Giscard d'Estaing (centro-direita, 1974-81).
Em sua longa história choveram julgamentos por difamação. Os processos da Igreja, de empresários, ministros ou famosos que eram alvo permanente de suas sátiras acabaram derrubando uma revista que em 1981, ano da eleição do socialista François Mitterrand, havia perdido muitos leitores.
Passaram-se 11 anos antes que Charlie Hebdo voltasse a ser publicada, em 1992. Desde então, a revista abriu suas colunas aos melhores cartunistas irreverentes da França, de Wolinski a Cabu, ambos mortos no atentado.
O número de 2006 que havia reproduzido as caricaturas da imprensa dinamarquesa alcançou um recorde de vendas de 400.000 exemplares. Até o dia do atentado, a revista, que passava por dificuldades financeiras, publicava semanalmente cerca de 30.000 exemplares.