Quem entra em um supermercado na Argentina percebe que alimentos de marcas importadas desapareceram das prateleiras, dando espaço a menos variedades. Quem tenta comprar um carro zero ouve nas concessionárias que não há previsão de entrada de novos automóveis no curto prazo. Entidades hospitalares alertaram há poucas semanas que cirurgias podem ser canceladas e tratamentos interrompidos por falta de equipamentos básicos.
Em dívida com o FMI e com as reservas em dólares no vermelho, a Argentina observa a sombra de um desabastecimento generalizado em produtos importados ou que dependem de peças de fora. Entidades empresariais e grupos de saúde vêm desde o começo do ano publicando notas de alerta, mas a recente desvalorização da moeda e com a entrada de dólares cada vez mais escassa, as ausências de produtos ficam mais evidente e o medo é de uma paralisação completa da produção industrial do país.
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Em agosto, o governo, que tenta se manter no cargo pela candidatura de Sergio Massa à presidência, correu para negar que havia risco de desabastecimento de produtos médicos depois que associações de tratamento de diálise alertaram que não estavam conseguindo comprar insumos e poderiam suspender tratamentos. Mas os comunicados de alerta não para de chegar e vêm dos mais diversos setores.
"As atuais restrições regulatórias e cambiais impedem o regular abastecimento do sistema de saúde, o que afetará a qualquer momento a realização de análises clínicas, obrigando à suspensão de intervenções como transplantes e cirurgias, colocando em risco de vida os pacientes do país", afirmaram entidades que representam empresas e laboratórios médicos em um documento enviado em julho ao ministro da Economia e presidenciável, Sergio Massa.
A área médica não é a única a sofrer com dificuldades de importação. Há pelo menos três meses a Argentina não recebe carros importados e faltam peças para os automóveis em manutenção. Entidades químicas também alertaram para a falta de insumos que impactariam desde a produção de alimentos até antibióticos, e a indústria no geral vê sua dívida externa crescer conforme o governo não libera os dólares para pagamentos de compras já feitas.
"No supermercado há cada vez menos variedade de produtos, porque a gente recebe muitos produtos alimentícios importados do Brasil", observa Juan Carlos Rosiello, professor de Economia da Universidade Católica Argentina (UCA). "O mesmo acontece com os carros, que compramos muito do Brasil e já não entram."
"Mas o mais angustiante é a falta de medicamentos, inclusive para doenças com tratamentos complexos. Obviamente a escassez de automóveis é menos grave que de medicamentos, e alimentos nós também produzimos internamente então vamos continuar comendo. Mas essa situação mostra que a Argentina não está tendo um livre comércio", completa.
No último dia 19 de setembro, a União Industrial Argentina lançou um alerta de que as dificuldades para acessar as divisas estão impactando nas compras de serviços essenciais para o funcionamento das indústrias, como licenças de softwares, hardwares e alojamento na nuvem.
A entidade também alertou para um salto na dívida comercial das empresas, que contam com uma liberação de dólares a conta gotas por parte do governo. Segundo comunicado, a dívida saltou de US$ 16 bilhões para US$ 38 bilhões nos últimos três anos. "Esse aumento está causando complicações no crédito privado que as empresas têm com seus fornecedores e pode causar maiores tensões nas cadeias produtivas", diz a nota.
"Nossas exportações têm um percentual de componente importado, então, se a indústria exportadora não consegue importar esse pequeno percentual que precisa para finalizar o seu produto, ela não consegue exportar, e isso gera um forte impacto na produção, que fica paralisada. Então além de impactar a área médica, de alimentos e automotivos, impacta também a questão da produção interna", explica Rosiello.
Restrições a importações
Segundo as entidades empresariais, o problema não é apenas a falta de dólares para pagar os parceiros comerciais, mas também as barreiras de importação impostas pelo governo e a constante oscilação de preços devido à inflação. Com as reservas líquidas em dólares negativas em quase US$ 10 bilhões, segundo estimativas de consultorias privadas, o governo tenta conter a fuga das notas com as importações.
Por um tempo o país permitiu que suas transações fossem feitas também em yuan, a moeda chinesa, mas mesmo esta fonte começa a secar. Com isso, o governo vem impondo desde outubro do ano passado um limite de importações.
Frente a um cenário de vários câmbios em circulação que chegam a custar até o dobro do valor oficial, o governo argentino se viu diante de uma situação em que produtores seguravam suas vendas sabendo que o produto valeria mais no futuro e importadores faziam imensas compras para garantir o dólar mais barato.
Com isso, foi criado o Sistema de Importação da República Argentina (Sira), para regular este fluxo. Quem precisa importar insumos tem que preencher um formulário e é a partir dele que o governo determina se autoriza ou não a entrada. As empresas, porém, vêm denunciado atrasos nas autorizações dos formulários e dificuldades de comunicação com as autoridades responsáveis.
Toda essa situação se soma à enorme desvalorização da moeda argentina que o governo promoveu logo após as eleições primárias, a pedido do FMI para liberar mais dinheiro. A medida gerou instabilidade nos preços, o que provocou a retirada de produtos das prateleiras.
De forma semelhante, parceiros comerciais passaram a vender seus produtos a conta-gotas contando com câmbios mais favoráveis nos dias seguintes. Com isso, serviços médicos que dependem de manutenção de estoques, como foi o caso dos centros de diálise, viram seus insumos minguarem.
Para completar, o país ainda atravessa uma seca histórica que já provocou a perda de metade dos principais cultivos da Argentina. O resultado de tudo isso é um déficit comercial de US$ 6 bilhões de janeiro a agosto, sendo este mês sozinho responsável por US$ 1 bilhão, 241% a mais que o mesmo período do ano passado. As importações caíram cerca de 12% no mês, enquanto as exportações caíram 26%.
"Quando um país está funcionando normalmente, a diferença de dólares se consegue com uma diferença comercial positiva entre as exportações e as importações", afirma Rosiello. "O problema é que as exportações caíram muito na Argentina". E o governo não pode utilizar os dólares que recebe do FMI para corrigir esta distorção, muito menos para desvalorizar o câmbio, ficando limitada a pagar a dívida com o próprio fundo.
A melhora deste desequilíbrio passaria por mais desvalorizações do peso, a fim de corrigir a distorção de câmbios que a Argentina tem entre dólar oficial e os outros vários tipos de dólares (blue, soja, turismo, entre outros). Uma ação que tem custos políticos altos para o ministro-candidato Sergio Massa, que já avisou que não o fará antes das eleições. Se ganha o pleito, porém, terá de fazê-lo se quiser mais dinheiro do FMI.
Segundo as últimas pesquisas de intenção de votos, Massa tem maiores chances de ir a um segundo turno com o libertário Javier Milei, o que aumenta sua resistência a medidas impopulares. Já Milei e Patrícia Bullrich, candidata da oposição macrista, prometem mudanças profundas nas políticas monetárias, cada um em um espaço de tempo diferente.