A mulher na nossa sociedade corre risco de morte e quem diz isso são dezesseis milhões de brasileiras. Esse é o número de mulheres com 16 anos ou mais que sofreram algum tipo de violência em 2018, no Brasil. O dado vem de uma pesquisa recente - divulgada em 2019 - feita pelo Datafolha, em parceria com a FioCruz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O levantamento expõe como ainda estamos longe um sistema realmente seguro para quem é do sexo feminino.
Porém, em tempos de conquistas tecnológicas importantes, o crescimento de startups que buscam soluções para enfrentar esse dado começa a aparecer e a tomar - ainda que em pequenos goles - força. É o caso de iniciativas recifenses como a NINA, o Mete a Colher e o - ainda embrionário - HEAR. Apesar de distintos, os três projetos foram criados com um objetivo: ajudar usuárias em situação de risco a encontrarem soluções para sair de cenários de assédio e violência.
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Uma NINA no ônibus
Filha de uma ex-cobradora de ônibus, Simony César cresceu ouvindo histórias de assédios em coletivos. Ao entrar na universidade, no curso de publicidade e propaganda, teve a sensibilidade de enxergar no ambiente acadêmico a oportunidade de fazer algo pelas mulheres personagens da rotina de sua mãe, que ao entrar em ônibus da Região Metropolitana do Recife sofriam algum tipo de violência nos coletivos. Assim, nasceu a ferramenta NINA.
"Eu venho de uma família que tem vários operadores na área de transporte, mas sempre na condição de empregados e não de tomadores de decisão. Quando eu entrei na universidade, um dos meus primeiros estágios foi em uma grande administradora de frotas ônibus e esse passou a ser meu dia a dia também. Acho que isso foi alimentando essa coisa da impotência. Enquanto usuária e agora rodoviária, eu me sentia tão impotente quanto. As leituras que eu fazia na universidade, de você cumprir o seu papel social, talvez tenham me dado mais coragem de iniciar a pesquisa", conta a CEO da NINA, que conseguiu transformar a ideia em uma empresa e está entre os brasileiros mais influentes com menos de 30 anos, de acordo com Forbes.
A ferramenta criada por Simony ainda não funciona na capital pernambucana, mas faz a diferença no aplicativo “Meu ônibus Fortaleza”, no Ceará. Para as cearenses que usam a tecnologia, ela serve como um botão de denúncia tanto para quem sofre quanto quem presencia situações de assédio nos coletivos, paradas ou terminais de ônibus. "A gente queria entender o contexto da mulher 'fortalezense' no ir e vir do transporte público. Elas (as mulheres) não confiavam no sistema que ofereciam, que era o número do sindiônibus ou da polícia", afirma Simony.
A CEO explica que, quando a usuária ou a vítima, faz a denúncia estando dentro do coletivo, os agentes da NINA localizam esse transporte e de imediato notificam a companhia, que tem até 72 horas para encaminhar as imagens do trajeto para a Polícia Civil. “A NINA tem muito essa questão da mulher cearense agora saber o que ela faz. A gente fez entrevistas com as usuárias (sobre o funcionamento do app) e a frase recorrente era "foi a primeira vez que eu sabia o que fazer", conta.
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É preciso ouvir
Tratando outros tipos violência estão o aplicativo veterano Mete a Colher e o ainda embrionário Hear. O primeiro surgiu em 2016 e é fruto da iniciativa de mulheres empreendedoras recifenses que queriam desmistificar o ditado "em briga de marido e mulher ninguém mete a colher". O resultado foi uma rede de apoio que ajuda vítimas a saírem de relacionamentos abusivos oferecendo informações, assessoria jurídica e um dos mais importantes atos de acolhimento, a escuta.
"A gente ainda pensou em fazer um botão de denúncia, mas quando começamos a entender todos os processos de violência doméstica, quais eram as dificuldades, percebemos que um dos grandes problemas é que as mulheres não tinham uma rede de apoio entre as próprias mulheres", explica Renata Albertim, uma das fundadoras do aplicativo. Ela afirma que, na época, as participantes da startup viram que o apoio e o acesso à informação eram uma demanda mais urgente para as vítimas, que possuem diferentes perfis e que nem sempre sabem o qual atitude tomar mediante à violência.
"Fazer uma denúncia é complicado. Não são todas as mulheres que querem denunciar. Existem dois lados, dois perfis. A que demora mais um pouco e a que vai de imediato. A gente acredita que enquanto rede de apoio, nós somos uma porta de entrada”, conta. Para ela, quando uma vítima entra para relatar um problema, mesmo que ela ainda não saiba exatamente que o que está sofrendo, é um indício que alguma coisa não está bem. “Aqui ela vai começar a conversar, a se entender e em algum momento a gente espera que ela se fortaleça um pouco. Costumamos dar orientações que há delegacias, pontos de referências, mas não existe um caminho único para a denúncia”, reflete.
Qual é o panorama da violência contra mulher no Brasil?
E não há mesmo. De acordo com a pesquisa da FioCruz, apenas 10% das mulheres que sofreram algum tipo de violência doméstica, em 2018, relataram ter buscado uma delegacia da mulher após o episódio. Por mais que o cenário ideal seja o aumento das buscas por ajuda, 52% das vítimas alegam não ter feito nada, repetindo o mesmo resultado da pesquisa realizada dois anos antes. A tendência, infelizmente, é piorar.
Desde dezembro de 2018, o Brasil possui um Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, aprovado pelo Conselho Nacional homônimo e válido por dez anos. Na teoria, o Plano estabeleceu que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública deve dispor de recursos financeiros, além daqueles previstos no orçamento da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, para induzir a implementação de estratégias que reduzam todas as formas de violência contra a mulher. Porém, em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro informou que não pretende reforçar o orçamento para a área.
Entre 2015 e 2019, o orçamento da Secretaria da Mulher do governo federal diminuiu de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões, de acordo com a própria Câmara dos Deputados. O problema é que, no ano passado, os registros de feminicídios cresceram no país, com uma alta de 12% nos assassinatos de mulheres, contra uma queda de 6,7% nos homicídios dolosos do gênero.
Na edição de 2019 do Atlas da Violência, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados de 2017, há um indicativo de que houve um crescimento dos homicídios femininos. No Brasil, em 2017, aconteceram cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007. Considerando o período de dez anos, os estados em que esse número aumentou foram Rio Grande do Norte, seguido por Ceará e Sergipe (107,0%). Pernambuco segue no meio da lista.
É importante ressaltar que, entre o número de feminicídios, o maior índice de violência está entre as mulheres negras e pardas. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%.
As mulheres negras são 66% de todas as mulheres assassinadas no país em 2017. Do total de homicídios contra mulheres, 28,5% ocorrem dentro da residência, segundo a pesquisa do Ipea. Ao que tudo indica, os números estão diretamente ligados a casos de feminicídios íntimos, que decorrem de violência doméstica.
Inteligência artificial usada para prevenir
Startups e grandes corporações começaram a aplicar softwares de Inteligência Artificial para prevenir abusos. E é aí que entra o, ainda embrionário, projeto HEAR. Depois de vivenciar a violência doméstica dentro da sua própria casa, o analista de sistemas Lincon Ademir trouxe, para dentro de sua pesquisa de mestrado, a ideia de criar um app que não apenas registra os pedidos de socorro das vítimas, mas os escuta em tempo real.
Com uma equipe compostas por pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFPE), ele dá os últimos passos para o lançamento do HEAR, um aplicativo que deve ouvir em tempo real se uma mulher sofre algum tipo de violência no ambiente doméstico e assim pedir por ajuda. A premissa da ferramenta é, assim com o Mete a Colher, funcionar como uma rede de apoio, em que, outras usuárias próximas geograficamente à vítima, possam comprovar o bem-estar da mulher - literalmente - batendo na porta na hora que forem acionadas. De acordo com a professora Ana Paula Furtado, essa seria uma forma de prevenir a violência antes que ela, de fato, seja consumada.
Sobra intenção, mas falta verba
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Além de lidar com a dor dos casos de assédio e violência, essas startups ainda sofrem com outra dificuldade: a falta de interesse de investidores para seus projetos. Tanto a NINA quanto o Mete a Colher e o HEAR dependem de editais públicos, cada vez mais escassos, ou de empresas interessadas em investir em seus projetos que precisam - acima de tudo - estar ligados à políticas públicas.
A solução encontrada por Renata Albertim foi a criação de outra plataforma, chamada TINA, feita para ajudar empresas a orientar suas funcionárias em casos de violência doméstica. "Como a gente é uma startup, somos um negócio e não estávamos encontrando uma forma de gerar receita com o aplicativo. Nosso app é gratuito e está disponível para todas as mulheres, mas a gente ainda precisa pagar funcionários para manter a aplicação. Trabalhar com tecnologia é bem caro", diz a empreendedora.
“Infelizmente, hoje, embora a gente utilize Inteligência Artificial, não existe investimento. Empresas privadas não entram porque não existe retorno para elas. É puramente social. Então o trabalho é a pesquisa de editais”, afirma Lincon. Para ajudar a fomentar o mercado local e mudar um pouco o cenário descrito pelo analista de sistemas, o Banco do Nordeste inaugurou, no último mês de fevereiro, um Hub de Inovação no Porto Digital - polo de tecnologia -, localizado no bairro do Recife.
A intenção da instituição é apresentar novas iniciativas para seus investidores e assim ajudar a colocar para frente ideias importantes como as criadas por Simony, Lincon e as mulheres do Mete a Colher. E, quem sabe, fazer parte de uma mudança sociocultural envolvendo a diminuição deste tipo de violência.