Na quarta-feira da última semana, dia 26 de agosto, o vice-presidente da República, General Hamilton Mourão (PRTB), participou virtualmente de uma aula magna, e defendeu que estudantes de universidades federais que tenham boas condições financeiras paguem mensalidades para ajudar a custear programas de inserção de estudantes de baixa renda em instituições particulares de ensino superior.
Mourão foi questionado sobre medidas de financiamento pensadas pelo Governo Federal para a inclusão de 83% da população brasileira em idade universitária no ensino superior, levando em consideração que boa parte desse percentual não dispõe de recursos para pagar pelos estudos, quando respondeu que o governo criará linhas de crédito para atender à população que não consegue ingressar no ensino superior. Em seguida, citou o pagamento de mensalidades em universidades federais como um “pensamento de longa data”.
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“Nós temos dentro da universidade federal, gente que poderia pagar seus custos, que está recebendo ensino gratuito de graça e, posteriormente, não devolvendo nada para o País”, disse o vice-presidente, usando como exemplo seus filhos, que segundo ele, foram alunos de universidades federais e poderiam pagar.
“Temos que pensar, hoje, seriamente e sem preconceitos. Ver o que seria um recurso para aqueles jovens que precisam de financiamento, e pagar uma universidade privada. Seria uma compensação muito justa isso aí”, afirmou o general, completando que, em sua visão, “uns 60% dos que frequentam universidade federal têm condições de pagar". "Um pagamento que fizessem serviria para que mais alunos ingressassem no setor privado e, consequentemente, para que aumentássemos o percentual de jovens no ensino superior”, complementou Mourão.
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Perfil dos alunos das universidades federais
Apesar de ter apontado um percentual de estudantes com renda que permitiria o pagamento de mensalidades, o vice-presidente não esclareceu se sua fala era baseada em alguma estimativa oficial, nem explicou se há encaminhamentos no Governo para tentar instituir pagamento de mensalidades em universidades federais.
A fala de Mourão contrasta com a V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das Instituições Federais de Ensino Superior de 2018, realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), que coletou dados de 420 mil estudantes de graduação das 63 universidades federais do Brasil, constatando que 70,2% dos alunos (294.840 estudantes) têm renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo, o que configura vulnerabilidade socioeconômica.
A primeira edição da pesquisa realizada pela Andifes data de 1996, quando o percentual de alunos em situação de vulnerabilidade era de 44,3%. “Percebe-se que, a partir de 2014, ocorre salto e os estudantes nessa faixa de renda passam a ser 66,2% do total de estudantes da graduação”, defende a Associação. A mesma pesquisa aponta que na série histórica, desde que foi iniciada a política de cotas, o número de estudantes que ingressam nas instituições por meio de ações afirmativas cresceu de 3,1% em 2005 para 48,3%, em 2018.
Diante da afirmação de Hamilton Mourão, o presidente da Andifes, Edward Madureira, afirmou ao LeiaJá que baseada em seus dados, a Associação se coloca contra a cobrança de mensalidades nas universidades federais e solicitará audiência com o vice-presidente.
“Somos contrários à cobrança e temos estudos que demonstram isso (a impossibilidade da proposta). Vamos solicitar uma audiência com o vice-presidente para mostrar os nossos estudos e as nossas argumentações. Estudos apontam a incapacidade de as famílias brasileiras assumirem despesas com educação superior nas universidades públicas. A maior parte dos estudantes destas instituições, segundo ele, é de baixa renda. A última pesquisa da Andifes, publicada no ano passado e com dados de 2018, mostrou que 70,2% dos estudantes de universidades e institutos federais estão na faixa de renda mensal per capita de até 1,5 salário mínimo”, disse Madureira por meio de nota.
Severino Mendes Júnior, pró-reitor de Gestão Estudantil da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), afirmou ao LeiaJá que a política de cotas ajudou a mudar o perfil dos estudantes das universidades federais, inserindo pessoas de baixa renda que antes não conseguiam ter acesso ao ambiente universitário. Nesse novo cenário, ele também destacou a relevância do Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), como aliado do sistema de cotas, para ajudar a garantir não apenas a entrada, mas a permanência dos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica nos seus cursos.
“Setenta por cento dos alunos matriculados nas instituições públicas do Brasil são vulneráveis. Na UFRPE, são 80%. Temos pesquisa sobre o desempenho dos alunos que recebem políticas de assistência, e é bem melhor que os que não recebem. Existe uma retórica na academia que essas pessoas têm desempenho baixo e não conseguem acompanhar, mas os dados provam o contrário. A sociedade contemporânea não sobrevive mais sem assistência estudantil”, explicou o pró-reitor.
“O maior ataque é ao princípio de educação pública para todos”
Marcelo Carneiro Leão, reitor da UFRPE Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens/Arquivo
Sobre a afirmação do vice-presidente da República, o professor Marcelo Carneiro Leão, reitor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), disse que se permite discordar e “com todo o respeito, a visão que ele [Mourão] está é uma visão de 30 anos atrás”. Para ele, “fazer justiça social com cobrança de mensalidade é uma posição equivocada”, pois deixa na mão dos governantes a decisão sobre quem paga, e quanto.
“É muito complicado, ‘vamo cobrar mensalidade dos mais ricos’, qual é a renda familiar que a gente vai estabelecer? O governante entra diz que é R$ 2 mil, tiver uma renda familiar de mais de 2 mil você paga. Aí entra outro governante mais bonzinho e diz não, é a partir só de R$ 5 mil, um governante menos alinhado com questões sociais diz ‘a partir de R$ 500 tem que pagar’”, opina o reitor.
Para o docente, há formas mais eficientes de garantir o acesso de estudantes de baixa renda ao ambiente universitário, como realizar mudanças na matriz tributária (de impostos) do País, para que o valor arrecadado pelo poder público com a parcela mais rica da população ajude a financiar o orçamento das universidades públicas.
“Os 10% mais ricos do Brasil pagam em média algo em torno de 21% de tributação, quanto mais se ganha percentualmente se paga menos, alterar este formato, enquanto os 10% mais pobres pagam 32% (...) No lugar de ficar brigando pontualmente a cada governo, se a gente mudasse a matriz tributária, resolveria essa questão social e os mais ricos financiariam mais a universidade pública para que os mais pobres pudessem também estudar, como é agora na realidade das nossas universidades. Se a gente quer fazer justiça social na universidade, devia ser na manutenção da gratuidade e na alteração da tributação onde os mais ricos pagarão mais impostos e financiarão mais o funcionamento da universidade”, sugere o gestor da UFRPE.
O reitor também destacou a perda histórica de orçamento que as universidades já vêm sofrendo há vários anos, que pode ser agravada pela nova proposta orçamentária apresentada pelo Governo Federal para o ano de 2021, que pode cortar recursos do Ministério da Educação (MEC) e consequentemente das universidades, em um momento no qual a pandemia de Covid-19 exigirá ainda mais investimentos e a assistência estudantil, diante da perda de renda e desemprego, se faz mais necessária que nunca para atender aos estudantes de baixa renda.
“A gente está anualmente com redução no Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES). Ele se mantém nominalmente no mesmo valor, mas a inflação está comendo, cada ano eu perco poder de ajuda aos nossos estudantes. A gente precisa diante desses 70% de alunos com vulnerabilidade, se a gente quiser levar educação para toda a população, principalmente classes menos favorecidas e mais pobres, a gente tem que buscar ampliar o PNAES, que é um programa que dá bolsas, auxílios, subsidia o restaurante universitário, uma série de ações para esses jovens terem acesso à universidade pública. A gente tem que aumentar o investimento. Eu não acredito que um país vá crescer e se desenvolver sem investimento em educação, para mim tem que ser o maior pilar de desenvolvimento, educação e saúde”, disse o reitor.
Questionado sobre os riscos de uma possibilidade como a cobrança de mensalidades em universidades públicas ser levantada por uma pessoa que está em um alto cargo de comando e decisão do governo do país, o reitor Marcelo Carneiro Leão diz que há risco ao modelo de universidade pública tal qual o concebemos hoje. “Eu acho que o maior ataque é ao princípio de educação pública para todos. Quando a gente fala em diminuir orçamento e aluno pagar, a gente está indo de encontro ao que a gente prega, que é educação pública de qualidade e inclusiva, que não é gasto, é investimento. A gente tem pesquisas em todo o mundo que mostram que quanto maior a escolaridade das pessoas na sociedade, o PIB aumenta numa proporcionalidade. Se a gente quer fazer com que o país cresça, e cresça para todos, que aí é uma visão de mundo, na hora que você vai de encontro à educação pública e não ao encontro dela, vai privilegiar quem de fato pode pagar por essa educação. Se conseguiu inverter isso precisa ser mantido. O único caminho é educação e não é opinião é história da humanidade”, afirmou o professor.
“O projeto de universidade pública é um projeto de país”
Alfredo Gomes, reitor da UFPE Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo
O reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Alfredo Gomes, afirmou sua posição contrária ao pagamento de mensalidades nas universidades federais e públicas de modo geral, apresentando dados sobre os estudantes. “Eu particularmente, assim como muitos outros colegas, somos contrários ao pagamento de mensalidades nas universidades públicas, federais. Temos hoje aproximadamente 1,3 milhão de matrículas nas universidades. Dessas, 900 mil são de estudantes abaixo de 1,5 salário per capita familiar. E 400 mil alunos aproximadamente são de famílias de até meio salário mínimo. Afinal de contas, de onde vem os dados para dizer que tem uma grande maioria que pode, portanto, custear a universidade?”, questionou ele.
O reitor destaca também outro fato muito importante no contexto de pandemia de Covid-19 que o país está atravessando. “A situação demanda financiamento por parte do Estado, a gente precisa continuar defendendo o orçamento público das universidades para garantir esse projeto. A universidade pública realiza 95% da pesquisa no Brasil, são questões muito importantes quando nós pensamos em um projeto de país, em um projeto de sociedade, de desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovação na educação que passam necessariamente pelas nossas instituições”, avalia o gestor da UFPE.
Diante dessa realidade, ele criticou a postura do vice-presidente Hamilton Mourão ao defender o pagamento de mensalidades nas universidades federais e alega que a maioria dos alunos tem condições financeiras para isso. “Estamos nesse ponto de vista de que a universidade pública, gratuita, financiada por recursos do Estado por meio dos impostos, deve permanecer. O projeto de universidade pública é um projeto de país. Desde 2013 temos a introdução do sistema de cotas na universidade. Funcionou muito bem e permitiu o ingresso em cada turno e curso de estudantes provenientes de escolas públicas. A situação demanda financiamento por parte do Estado, a gente precisa continuar defendendo o orçamento público das universidades para garantir esse projeto”, disse o professor Alfredo.
Ele continua: "Desde os anos 80 você tem defensores dessa tese e ela não ganha materialidade em termos de políticas. É uma figura que ocupa um cargo altíssimo na República, mas é necessário ter cuidado e tratar devidamente a questão com zelo, com respeito à história, à grande contribuição que as universidades públicas federais prestam a esse país”, disse o reitor da UFPE.
“A gratuidade está na Constituição”
Iago Montalvão, presidente da UNE Foto: Reprodução/Instagram
O estudante de economia da Universidade de São Paulo (USP), Iago Montalvão, é presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e também se opõe à ideia de pagamento de mensalidades em universidades federais. Ele alega que além das questões que envolvem a necessidade de ampliação à assistência estudantil diante da mudança de perfil socioeconômico dos alunos causada pela política de cotas, a imposição de qualquer tipo de pagamento em uma instituição pública significaria uma tributação dupla para ao alunos.
Iago justifica a afirmação explicando que tanto a construção quanto a manutenção e investimento das universidades é feita com dinheiro de impostos, já pagos pela sociedade. “Quando você paga imposto, espera um serviço público em troca. Imagina quanto dinheiro público você não investiu numa universidade pública para ela chegar a esse patamar durante os anos, as décadas?. Isso foi entregue à sociedade de forma gratuita, porque ela já pagou o serviço quando pagou o imposto”, explicou o estudante.
Além disso, é uma preocupação do presidente da UNE a dificuldade de determinar quem deveria pagar, e quais valores, uma vez que há diferentes perfis socioeconômicos ao analisar universidades e cursos diferentes, segundo ele. A terceira e última razão de sua discordância é que segundo Iago, ideias como essa abrem espaço para um precedente que ele classifica como “perigoso”, de criação de um sistema de ensino pago nas instituições públicas.
Iago lembra também que a gratuidade do ensino está na Constituição Federal. No Capítulo III - Da Educação, da Cultura e do Desporto - Seção I, um trecho do Art. 206 determina: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”.
A afirmação de Hamilton Mourão, na opinião do presidente da UNE, não tem base na realidade das universidades e nem seria uma ideia de nova medida do governo, mas algo pensado no momento do evento pelo próprio vice-presidente. “Minha tese é que o que ele está dizendo veio da cabeça dele, não veio de um aprofundamento, de um debate. A maior prova disso é que na reforma tributária [do governo Bolsonaro] uma das coisas que eles fazem é deixar de isentar universidades comunitárias filantrópicas, não lucrativas, para que elas deixem de oferecer determinadas bolsas para os estudantes. Ele fala, mas na prática está fazendo outra coisa. Mesmo no ponto de vista do projeto privatista, eles estão em conflito com todo mundo”, afirmou o estudante.
Apontando a falta de projeto de qualquer tipo para a área da educação no governo Bolsonaro, Iago afirma que, em sua opinião, o que o governo tenta fazer de forma planejada é promover o descrédito das universidades públicas perante a sociedade. “O que eles querem é criar uma polêmica em torno da universidade pública, do papel da universidade pública. Aí sim eu concordo que há um projeto conjunto de desmoralização da universidade pública. Vai usar vários artifícios para chegar a esse objetivo, vai dizer que só planta maconha, que só tem gente rica que está lá e poderia pagar, há uma tentativa muito incisiva de tentativa de desmoralização da universidade pública, porque é um ambiente onde não se encaixa o tipo de pensamento que eles representam no governo”, afirmou ele.
Questionado sobre possíveis impactos da hipotética implementação de uma medida como a que o vice-presidente da República sugeriu, o presidente da UNE aponta o aumento da desigualdade social e consequências que viriam em decorrência dele. “Aquele jovem que nunca teria perspectiva de ter uma profissão melhor remunerada, ao entrar na universidade, cria essa perspectiva. Não ter uma universidade pública com acesso gratuito para que essa juventude de baixa renda possa ter acesso, prejudicaria muito a redução de desigualdades e uma série de outros fatores vem em decorrência disso. Índice de criminalidade, violência, tudo isso seria fruto de uma medida como essa”, afirmou o presidente da UNE.