Família do interior de Pernambuco comemora os benefícios das cotas rurais. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens
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Os 71 quilômetros de distância entre Vitória de Santo Antão e Sairé, ambas cidades localizadas em Pernambuco, não são capazes de desestimular a força de vontade de Maria Eduarda Campos Alves, de 15 anos. Todos os domingos, a jovem sai de casa em busca de um sonho: concluir o ensino médio integrado ao ensino técnico de agroindústria no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE).
A aula no campus Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata pernambucana, começa às 7h30, mas muito antes disso a garota já está a caminho da instituição. Todos os sábados, Eduarda sai do sítio da sua família, localizado na área rural de Sairé, e vai para a casa de sua tia, em Gravatá, ambas cidades do Agreste de Pernambuco.
Estar em Gravatá traz uma facilidade no seu início de semana, já que o percurso até a sala de aula encurta para 19 quilômetros. “Saindo do sítio dos meus pais eu tenho que pegar um ônibus até a cidade, da cidade eu pego outro ônibus até Gravatá, de Gravatá eu pego outro ônibus até Vitória [de Santo Antão] e quando chega na rodoviária eu pego outro ônibus para a instituição”, explica a garota. Eduarda ressalta que, para o percurso da casa da sua tia para o campus onde estuda, só é necessário um transporte. “Eu pegava um ônibus daqui de Vitória para Gravatá, chegava e andava um pouco até a casa dela. Para ir para Sairé, pegava outro ônibus até lá e de Sairé para minha casa pegava um mototáxi. Agora eu estou começando a ir de van para a casa da minha tia porque ele me deixa aqui dentro do campus e me leva para próximo da casa dela”, conta.
Mas, de segunda a sexta-feira, todo esse deslocamento não é necessário. Eduarda conseguiu ter acesso à moradia estudantil, oferecida pelo IFPE. A instituição disponibiliza quartos para que os estudantes com dificuldade de deslocamento para suas casas possam passar o período de aulas dentro do campus. “Eu fui com minha mãe e meu pai no IFPE e me disseram para mandar uns documentos por e-mail, escaneados, mas quem disse que eu sabia fazer isso? Eu não tenho computador nem impressora, então descobri que um cara fazia esse serviço, aí cheguei lá já chorando, mas consegui. Mandei tudo em cima da hora e pensei que não iria ter acesso à moradia”, confessou.
Eduarda tinha medo de precisar ir para uma escola com ensino médio regular e perder a oportunidade de sair profissionalizada do ensino básico. “Por semana, iria gastar uns R$ 60 de passagem e não coseguiria ir e voltar para casa todos os dias. Teria que ir para uma escola pública lá perto de casa e perder a oportunidade que tenho hoje de sair do ensino médio já com uma profissão técnica”, diz. Mas a espera teve final feliz e seu lugar na residência que fica nos fundos do campus Vitória do IFPE foi reservada. Hoje, Eduarda divide o espaço com mais cinco meninas.
Todas as barreiras superadas por Eduarda a deixam ciente da importância de ter conseguido entrar como cotista de zona rural do IFPE e de que mais e mais estudantes consigam esse benefício. “Acredito que os estudantes que moram na cidade e longe de zona rural têm mais chances de um ensino melhor e de uma educação de mais qualidade. Sem essas cotas, eu não conseguiria entrar”, acredita a estudante.
A jovem soube das cotas rurais no vestibular por meio de um professor. “Fui fazer a inscrição e ele me disse que eu poderia concorrer como cotista. Nem sabia o que era direito, mas fui lá, fiz e fui aprovada. Hoje, sou muito grata às cotas por ter conseguido estar onde estou, ela só traz benefícios, é uma forma de igualar quem tem acesso a um ensino melhor de quem não tem”, comenta.
A mãe da garota, a agricultora de 34 anos Maria Andreia Campos, fica feliz pelas conquistas da filha. “A gente que não estudou tem que dar a oportunidade a ela de conseguir o que quer. O percurso é difícil, ela passa muito tempo longe de casa, mas a gente não deixa de dar as coisas. Quando o dinheiro não dá para passagem, todo mundo ajuda, um tio dá um pouquinho, outro primo dá um tiquinho e assim a gente vai levando”, enfatiza. O padrasto da garota, o também agricultor Cícero Amaral da Silva, diz que Eduarda é como uma filha. “Eu faria tudo por ela, é como uma filha para mim. Eu não estudei e estou aqui plantando, e não quero isso para ela. Quero que ela tenha estudo para ser médica, como ela quer”, diz, orgulhoso.
O fator familiar também é um apontamento decisivo para que Eduarda não tenha total auxílio dos pais em relação aos seus estudos. Sua irmã, Andrielly Campos, de seis anos, tem microcefalia. Todos os dias, os pais da garota vão levá-la para os tratamentos. “De segunda a sexta, a gente tem fisioterapia, consulta, fonoaudiologia. É aqui, em Vitória, em Gravatá e em Caruaru. Sempre temos que estar de lá para cá com ela. Um dia vamos com o transporte da prefeitura, no outro com um carro emprestado de um primo, e a gente sempre vai levando”, explica a mãe. O sonho de Eduarda é ser neurocirurgiã. Mas, para isso, ainda há uma longa batalha pela frente.
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Caminho, estrada e transporte
“Quando existir uma escola pública de qualidade, quando houver caminho, estrada e transporte, aí não serão necessárias as cotas”, argumenta o especialista em cotas e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Michel Zaidan. Segundo o docente, a reserva de vagas para moradores de zona rural se dá porque não existe um amparo público que supra as necessidades educacionais básicas da população do campo. Isso significa que as instâncias escolares, bem como os serviços que mantém os estudantes dentro das salas de aula são escassos e falhos.
Para ir até a instituição de ensino, seja ela de boa ou má qualidade, é preciso ter transporte. Caso contrário - apenas com exceção de situações super-heróicas em que jovens caminham por quilômetros para chegar à escola -, é humanamente exaustivo ir para a sala de aula. Muitos acabam desistindo da permanência na instituição e preferem gastar energia cultivando e ajudando a família nas atividades do campo.
Os gastos também importam. O custo semanal de Eduarda, caso ela precisasse se locomover todos os dias de casa para o campus onde estuda, seria em torno de R$ 60. Isso, multiplicado por 20 dias úteis, resulta em R$ 1,2 mil, mais de um salário mínimo gastos apenas com transporte. Sem contar o que seria necessário para alimentação e estudos da garota.
E nesse ponto, o professor Michel Zaidan aponta uma solução. “Se a gente universalizasse a escolarização, inclusive o campo, não haveria necessidade de cotas. Mas nós não temos suficiente nem na zona urbana, quanto mais na zona rural. As cotas são um substitutivo para políticas públicas deficientes, de uma maneira geral. Se essas políticas públicas fossem universalistas e não compensatórias, não havia necessidade de cotas”, diz. O especialista também aponta um movimento contra as cotas. “Infelizmente, ainda existem aquelas pessoas que se sentem inferiorizadas por conta das cotas. Elas alegam que existe uma discriminação, cria-se um estigma de ‘coitadinhos’ para as pessoas beneficiadas, mas isso não é verdade, elas são capazes e o que lhes falta são as condições do meio”, ressalta Zaindan.
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Para a assistente social do IFPE, Marise Costa, a possibilidade de cotas é uma forma de igualar quem está em desequilíbrio educacional, além de ser uma maneira de melhorar a qualidade de vida das pessoas. “Algumas pessoas certamente não chegariam onde chegaram se não houvesse o sistema de cotas, então o impacto maior é na vida delas. Já tivemos aqui estudantes que saíram do curso superior diretamente para o mestrado em São Paulo, todos eles entraram pelas cotas”, relembra.
Muitos estudantes que vêm da zona rural conseguem uma vaga na Moradia Estudantil, mas a capacidade do IFPE não suporta todos os que necessitam. Por isso, o que resta a alguns discentes é procurar vagas em repúblicas particulares que ficam localizadas foras das dependências do campus. “Para isso, o IFPE oferece uma ajuda de custo que auxilia no pagamento das despesas. Não é o suficiente para custear todas, mas é algo que de certa forma ajuda os estudantes. Eles também garantem a alimentação disponibilizada dentro do campus”, explica Costa.
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Realidade do ensino rural
Em Pernambuco, a única instituição pública de ensino que oferece processo seletivo com cotas para moradores de zona rural é o IFPE, com 25% das vagas de ampla concorrência reservadas para habitantes do campo ou filho de agricultores. Desde a implementação da modalidade, no vestibular de 2013, foram oferecidas 977 vagas. Durante os anos de seleção, os candidatos puderam concorrer aos cursos técnicos de agroindústria, agropecuária, zootecnia, alimentos, agroecologia e agroeconomia. Também foi disponibilizado o curso de bacharelado em agronomia. Todas as oportunidades são concorridas para os campus com vocação agrícola, que são Barreiros e Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata Sul, e Belo Jardim, Agreste.
Também no solo pernambucano, a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) inaugurou, em 2019, o curso de bacharelado em agroecologia. O objetivo da graduação tem a finalidade de promover a conhecimento a profissionais que lidam diariamente com as atividades do campo. Durante o processo seletivo, foi priorizado o ingresso de agricultores, familiares e camponeses, assentados da reforma agrária, aquicultores, pescadores de base familiar, comunidades tradicionais em geral, como extrativistas, quilombolas e indígenas, em acordo com a Lei da Agricultura Familiar.
Segundo as sinopses estatísticas da educação superior, divulgadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), das 2.448 instituições de ensino superior existentes no Brasil, 1.574 estão localizadas nos interiores dos estados. Sancionada há sete anos, a Lei de Cotas trouxe avanços e oportunidades para quem busca melhores condições de educação. Atualmente, a forma mais popular de ingresso nas instituições é por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Nele, é preciso que os estudantes tenham realizado o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Mas o caminho para chegar às universidades é longo e passa pelo ensino básico. De acordo com informações do Ministério da Educação (MEC), atualmente, existem 73.483 instituições de ensino municipais e estaduais no campo, das quais 1.856 quilombolas e 2.823 indígenas. As demais 68.804 são escolas rurais ou unidades em assentamentos.
Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:
1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior
2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas
3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior
4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas
5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas
7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios
8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico
9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular
10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?
11 - Como seria um mundo sem cotas?