Representantes de organizações que dão assistência jurídica, médica e laboral a imigrantes e refugiados criticaram nesta terça-feira (1º), em audiência na Comissão de Direitos Humanos (CDH), o substitutivo do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) ao projeto que simplifica o visto temporário de trabalho para estagiários e intercambistas (PL 1.928/2019). Segundo eles, a pedido do governo, Bezerra acabou alterando partes importantes da Lei de Migração (Lei 13.445, de 2017).
Os participantes da reunião reclamam que, em nome da segurança nacional, Bezerra teria trazido à Lei de Migração ressalvas que colocam em xeque a dignidade e a liberdade dos estrangeiros que pedem refúgio no Brasil.
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Uma das medidas criticadas pelos convidados foi a exigência de que transportadoras forneçam informações antecipadas à Polícia Federal sobre passageiros, tripulantes e registros de compras de passagem.
No texto de Bezerra também é dada a possibilidade de a Polícia Federal pedir ao juiz a prisão ou outra medida cautelar para fins de deportação ou expulsão do imigrante. Enquanto a deportação ou expulsão não for efetivada, o suspeito poderá ficar preso por até 60 dias, prazo que pode ser prorrogado por um período não definido.
O ingresso, a residência ou a concessão de refúgio no país também poderá ser negado em caso de suspeita de crimes graves (como tráfico de drogas, armas ou pessoas) ou hediondos e também por suspeita de terrorismo ou ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado democrático. Crimes de pedofilia ou de associação criminosa e participação em torcida com histórico de violência em estádios também podem motivar a negativa do visto.
O imigrante acusado fica sujeito a repatriação, deportação ou cancelamento da autorização de ingresso ou residência no país, de acordo com “procedimento excepcional” a ser regulamentado pelo Poder Executivo.
Movimentos sociais
Defensores dos direitos humanos temem que o endurecimento da Lei de Migração proposto pelo substitutivo de Bezerra aumente a arbitrariedade das negativas de entrada no país. De acordo com o padre Marcelo Quadro, diretor da Cáritas de São Paulo, o Brasil não só tem uma legislação avançada para o recebimento de imigrantes, como também tem boas práticas que servem de modelo para o mundo, e isso deveria continuar assim.
Ele deu como exemplo o acolhimento a haitianos e venezuelanos, reconhecido como bem-sucedido pela comunidade internacional.
Quadro colocou exemplo concreto no que seria o cumprimento do PL 1.928/2019. Ele citou o caso de um homem da Lituânia que recebeu asilo por perseguição religiosa por ser adepto do Santo Daime, seita cuja bebida é considerada ilegal no seu país, mas não no Brasil. Marcelo Quadro explicou que o homem seria considerado um criminoso e seria deportado em razão da Lei de Migração, caso as alterações do PL 1.928/2019 entrem em vigor.
O defensor público federal Gustavo Zortea da Silva questionou a prisão de até 60 dias com possibilidade de prorrogação por tempo indeterminado para fins de deportação e expulsão, não prevista na Constituição Federal.
Outro ponto sensível, na visão dele, é que o suspeito de cometer crime em seu país já poderá ser deportado, apenas pelo fato de ser suspeito. Na atual Lei de Migração, a justificativa para deportação seria ele estar respondendo a processo ou ter sido condenado por uma conduta tipificada como crime não só no país de origem, mas também no Brasil.
“Toda política migratória transita entre dois temas, a segurança nacional e o direito dos imigrantes. Mas esse subsistema, com as emendas apresentadas pelo Ministério da Justiça, carrega demasiadamente no aspecto da segurança nacional, anulando as garantias de direito dos imigrantes”.
Zortea pediu que o substitutivo de Bezerra ao PL 1.928/2019 passe pelo mesmo nível de debate pelo qual passou o projeto que instituiu a Lei de Migração. A participação popular no debate também foi o ponto destacado pelo representante do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Felipe Vasconcellos.
Ele quer que imigrantes e refugiados sejam chamados a debater para que a preocupação com a segurança nacional seja avaliada juntamente com a obrigação do país de prover os direitos humanos, a proteção à vida, à segurança e à liberdade, entre tantos outros.
Nações Unidas
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) foi representado na audiência por Federico Martinez. Ele disse que o Acnur concorda com as medidas de proteção dos países para que não recebam condenados por crimes, mas acredita que seja respeitado o direito de pedir o refúgio e o direito de não devolução da pessoa.
O Acnur sugeriu aos senadores que o Brasil tenha salvaguardas para assegurar que as pessoas que buscam refúgio sejam tratadas segundo a convenção sobre o Estatuto de Refugiados adotada pelas Nações Unidas em 1951, já recepcionada pelo Brasil. Martinez também sugeriu que o país garanta que as cláusulas de exclusão não sejam expandidas para além do que prevê a convenção.
Assessora política do grupo católico Missão Paz, Letícia Carvalho criticou a recente revogação, pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, da portaria que previa pedido de autorização de residência protocolado por imigrante ou visitante que se encontre em território nacional e não esteja enquadrado nos casos previstos expressamente na Lei de Migração (Portaria Interministerial 4/2018).
"A maneira como este governo vem tratando as normas de políticas migratórias pode se tornar atentatória à dignidade da pessoa humana, pode acabar com os sonhos de pessoas que, de fato, têm muito a contribuir com o país".
Portaria 666
A coordenadora de Programas da Conectas Direitos Humanos, Camila Asano, acusou os órgãos do Executivo de descaracterizar e enfraquecer os benefícios garantidos pela Lei de Migração. Exemplo disso seria a edição da Portaria 666, que impede o ingresso e prevê a repatriação e a deportação sumária de pessoa considerada perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.
— Ela cria a figura de deportação sumária, que não existe na Lei de Migração. O período de 48 horas para deportação inviabiliza qualquer forma de defesa. Ela deturpa em vários aspectos o direito ao contraditório, à ampla defesa e à não discriminação.
O contraponto foi feito pelo coordenador de Política Migratória do Ministério da Justiça, Flávio Diniz Oliveira. Ele explicou que a portaria tem um caráter excepcional e nunca foi aplicada desde sua edição.
A portaria regulamenta duas leis específicas (o Estatuto dos Refugiados e a Lei de Migração) para barrar especificamente criminosos de absoluta periculosidade, ligados ao terrorismo, crime organizado armado, ao tráfico de drogas, armas e pessoas, à exploração de crianças e adolescentes e a torcidas organizadas violentas durante eventos esportivos.
“O foco dessa lei é muito específico, em pessoas que recebem esse mesmo tratamento em vários outros países do mundo. O ajuste foi necessário para resgatar, no controle migratório, mecanismos para resguardar o direito dos brasileiros de terem sua segurança preservada”, disse o coordenador.
Segundo Oliveira, o Ministério da Justiça tem quase 200 mil pedidos de refúgio — na maioria, venezuelanos — e a Portaria 666 não os inviabiliza. Ele afirmou que a legislação brasileira já é bastante generosa com o estrangeiro, até pela possibilidade de ele se tornar um nacional sem ter nascido no território nem ter ascendentes consanguíneos brasileiros.
*Da Agência Senado