Saltitando com um sorriso largo, o palhaço abre caminho como uma corrente de ar fresco entre centenas de dependentes químicos e moradores de rua aglomerados em uma área dominada pelo tráfico de drogas no centro de São Paulo.
"Bom dia Cracolândia'!", grita no microfone Flávio Falcone, um psiquiatra que às quintas-feiras troca o jaleco branco pela maquiagem, o nariz vermelho e o macacão para se aproximar de quem sobrevive no maior mercado aberto de drogas do Brasil.
Falcone, de cabelos curtos tingidos de loiro e braços tatuados, passou uma década trabalhando com dependentes químicos nessa região que há cerca de 30 anos resiste como um desafio no coração da maior cidade da América Latina.
"São as pessoas fracassadas do sistema capitalista, que não conseguiram ser o que se esperava delas", disse à AFP este médico, de 43 anos.
O palhaço representa "uma esperança diante desse fracasso", explica. "Você ri do palhaço porque ele tropeça, não porque ele acerta", afirmou.
Por essas quadras de clima pesado, o 'crack', derivado da cocaína, circula livremente entre uma população de 800 a 1.700 usuários, dos quais 39% estão no local há uma década, segundo dados de 2022, divulgados em 2023, da Universidade Federal de São Paulo .
O número chegou a 4 mil, mas foi reduzido após fortes operações policiais no ano passado que fragmentaram a Cracolândia, espalhando-a pelo centro de São Paulo.
Diante da dureza das ruas, a empatia do palhaço facilita “uma identificação imediata”. Algo impossível de construir vestido de médico porque muitos temem uma internação compulsória como aconteceu no passado, diz Falcone. O médico tenta oferecer uma saída, mas também uma "reparação histórica" a essa população de maioria negra e parda.
- 'Crack', 'funk' e ilusão -
Quando começa o 'funk', muitos dos que estão deitados na calçada o ignoram, mas outros vão ao encontro do "palhaço", como é conhecido por ser o único na região.
Seu espetáculo consiste em um concurso de apresentações entre voluntários.
O primeiro a cantar diante de um júri formado por moradores da região é Peterson P.P., "funkeiro" de 29 anos, morador de rua desde criança e da Cracolândia há três anos.
"Sinto que estou no meio do palco, dá uma inspiração. Sempre peço a Deus essa oportunidade", diz o jovem negro, de camiseta listrada, bermuda e chinelo.
Na plateia, um homem magérrimo queima uma pedra de crack em uma pipa de metal. O efeito dessa fração vendida a 20 reais é imediato, intenso e breve.
O concurso visa despertar uma força vital "que motive essas pessoas a iniciar um tratamento”, diz o psiquiatra, cujo trabalho há uma década tem alternado financiamento público, voluntariado e o atual apoio de empresas privadas.
Seu programa tem três etapas: "Primeira coisa é dar moradia(...) a segunda coisa é oferecer algum tipo de trabalho, o tratamento vem em terceiro lugar". Assim consegue-se a "redução de danos até abstinência total", explica Falcone.
A meta é a autonomia, alcançada por várias dezenas de pessoas hoje empregadas em tarefas como limpeza, costura ou em um programa municipal de reinserção ao mercado de trabalho.
Vanilson Santos Conceição, baiano de 35 anos, desfruta de seus novos "luxos": dormir sob um teto, tomar banho e cozinhar.
"A rua é muito sofrimento. Eu só ficava na rua, não tomava banho, não me alimentava direito, usava muita droga. Parei, já tenho três anos e três meses sem usar droga", disse o homem que cozinha para sua "família" sem-teto.
- Ordem em "terra de ninguém" -
Mas quando a música para a Polícia Militar chega, desencadeando uma fuga em massa. Um estrondo ressoa um pouco mais longe.
Organizações civis da Cracolândia denunciam a violência policial durante essas frequentes operações, enquanto moradores e comerciantes reclamam da insegurança e dos prejuízos econômicos na “terra de ninguém”, como a chamam.
O novo governo estadual de São Paulo lançou um plano em conjunto com a Prefeitura, disse à AFP o vice-governador e encarregado da Cracolândia, Felicio Ramuth.
“Hoje tem mais ação social do que Estado. Isso é uma realidade. É como se cada um estivesse remando em uma direção diferente”, reconhece Ramuth.
Segundo Ramuth, os esforços vão incluir especialistas trabalhando no local, uma maior variedade de tratamentos, de grupos de autoajuda a internamentos, e registro das pessoas que lá vivem.
Além disso, serão instaladas 500 câmeras de segurança e 1.000 vagas estarão disponíveis em comunidades terapêuticas, embora “a internação compulsória seja o último recurso”, afirmou Ramuth.