A doméstica Maria Cristina apresenta dificuldades para escrever e ler. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens
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"Eu nunca quis estudar e também tive que trabalhar cedo. Perdi muitas coisas na vida por causa de estudo e hoje me arrependo muito. Tenho vergonha de não saber ler e escrever porque dependo dos outros para tudo, mas vou levando”. Maria Cristina da Silva, 53, só frequentou a escola até a antiga primeira série, que hoje representa o segundo ano. Ela não se recorda com que idade largou os estudos, mas se lembra bem que o destino traçado foi a cozinha das patroas. Doméstica, diarista, cozinheira e faxineira foram os cargos que sobraram para Cristina, que apesar de nascer em uma família humilde, sempre sonhou alto. Queria mesmo era trabalhar em uma firma ou montar um negócio próprio e ser a sua chefe.
Envergonhada por nunca ter aprendido a ler e escrever, a doméstica, que nasceu em João Pessoa, na Paraíba, mas veio jovem morar no Recife ainda jovem, não perdeu o desejo de conseguir unir letras, palavras e poder ir ao supermercado sem precisar de ajuda. Cansou de enfrentar preconceitos dos atendentes de banco e decidiu que era o momento de aprender a escrever o seu nome. “Minha menina me ensinou e eu pelo menos sei fazer igual ao meu documento, mas tenho que estar olhando para a identidade”, frisa a doméstica.
Moradora do Córrego do Capim, em Águas Compridas, na cidade de Olinda, Maria conta que já tentou frequentar aulas no programa educacional ‘Educação Jovens e Adultos’ (EJA), mas que o local onde mora, com muitas ladeiras, e a falta de dinheiro para passagem de ônibus, são um impedimento que a afasta do sonho de ler e escrever.
Apesar dos percalços, ela ainda acredita um dia possa ter a oportunidade do aprendizado. “Ainda sou nova, não é? Tem tanta gente velha que consegue”, diz. Mãe de três filhos, dos quais só conseguiu criar a mais jovem porque trabalhava muito, ela faz questão de repassar a mensagem, também aos netos, de que sem estudo não há muitas opções. “Eu queria demais voltar no tempo e fazer tudo da forma correta, mas agora é tarde e por isso levo meu neto em projetos sociais e agora também faço aula de artesanato no Movimento Pró-criança”, conta.
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Na educação, pesquisadores dividem o analfabetismo em três principais grupos. O analfabetismo absoluto ou total é quando o cidadão recebeu pouca ou nenhuma orientação para ler e escrever. A maioria não consegue nem mesmo assinar o próprio nome. O iletrismo é quando não há compreensão do que lê. O problema é geralmente ligado a um ensino com defasagem na escola. No Brasil, a falta de incentivo aos sistemas educacionais é um dos causadores do iletrismo. Já o analfabetismo funcional é quando o indivíduo consegue ler e escrever frases curtas, mas não compreende em completo o seu significado. Sabe decodificar os símbolos, mas não o que eles querem dizer.
Nas últimas décadas, o Brasil vem reduzindo a taxa de analfabetismo. Desde o final dos anos 1940, o governo federal criou iniciativas complementares aos programas municipais e estaduais. Uma das mais conhecidas foi o “Mobral”, criado pelo regime militar. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que nos anos 1960, 40% da população brasileira com 15 anos ou mais não sabia ler nem escrever.
A história de Maria Cristina e o seu sonho se perde nas atuais estatísticas brasileiras. Ela se tornou mais uma vítima do sistema educacional do país. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada pelo IBGE, mostrou que o país tinha 11,46 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade que não sabiam ler ou escrever um bilhete simples no ano de 2017. Já em 2016, o número maior e somava 11,76 milhões. Por isso, a taxa de analfabetismo brasileira recuou de 7,2% em 2016 para 7% em 2017. Mas, apesar do avanço, a persistência da mazela ainda é significativa e os dados são alarmantes.
Fonte: IBGE
Apesar dos avanços conquistados nos últimos anos, o país ainda ostenta lamentavelmente uma das piores taxas de analfabetismo de jovens e adultos (15 anos ou mais de idade) entre os países da América Latina e Caribe. Em um ranking de 21 países do continente compilados pela Unesco, o Brasil apresenta a 15ª maior taxa, de 7%, e ocupa o mesmo lugar que o Suriname.
O progresso lento deixa cada vez mais distante a meta oficial de erradicar o analfabetismo até 2024, como previsto no Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014. Um dos indicadores que apontam a não probabilidade da taxa 0% ser alcançada é que o país já descumpriu uma meta intermediária desse mesmo plano, de reduzir o indicador para 6,5% em 2015.
Em entrevista ao LeiaJa.com, Caio Callegari, coordenador do projeto Todos Pela Educação, explicou os principais desafios para erradicar o analfabetismo e frisou que neste Dia do Estudante, o brasileiro tem pouco a comemorar. “Nós precisamos avançar em várias formas. Uma delas é melhorar o acesso à escola e a qualidade do ensino. Por exemplo, a alfabetização deveria ocorrer até os oito anos de idade. Mas, na realidade, o que acontece é que muitos jovens e crianças saem da escola e por conta disso acabam não tendo a oportunidade do direito educacional obrigatório, dos 4 aos 17 anos”, explica o gestor.
O Brasil possui 2.486.245 crianças e adolescentes de 4 e 17 anos fora da escola, segundo levantamento feito pelo Todos Pela Educação com base nos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad). O montante representa cerca de 6% do universo total de alunos. “É preciso fazer um esforço considerável para manter esses jovens dentro dos colégios e isso se faz dialogando com os estudantes, tendo um ensino atrativo e garantindo esse acesso. É uma medida urgente que precisa ser efetivada para que as novas gerações não continuem saindo das escolas analfabetos. Ao sair das escolas eles estão desprotegidos e distantes das condições de aprendizagem. A taxa de evasão do ensino fundamental é de 8% ao ano”, aponta Caio.
Dos 11,466 milhões de brasileiros de 15 anos ou mais que não sabem ler e escrever, 6,427 milhões, ou 56% do total, moram no Nordeste. Na região, a taxa de analfabetismo ficou em 14,5% em 2017, o dobro da média nacional. Em Pernambuco, a taxa de analfabetismo é quase o dobro da média nacional, com 13,4% em 2017. Um milhão de pernambucanos não sabem ler e escrever.
“A gente percebe que o Norte e o Nordeste possuem dados mais latentes e muito disso é consequência da desigualdade regional histórica que temos no país. O investimento é menor e isso acarreta muitos prejuízos. Existe uma relação muito forte entre qualidade e pobreza. A gente sabe que estudantes mais pobres acabam tendo um desempenho menor, mas isso não pode ser um fator determinante. Pelo contrário, é preciso criar políticas para romper esse ciclo. Dar mais estrutura e investir mais nas regiões mais pobres e isso sim pode fazer com que o estudante supere a pobreza através da qualidade do ensino”, avalia Caio.
Flanelinha há 20 anos, Alessandro não teve bons estudos e vive nas ruas para ganhar dinheiro. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
O flanelinha pernambucano Alessandro Costa da Silva, 40, estudou até a segunda série do primário. “Eu não estudei mais porque tive necessidade de trabalhar já que meu pai e minha mão separaram e tive que correr para ganhar dinheiro catando papelão”, afirma.
Ele diz que o estudo teria lhe proporcionado uma profissão digna, como policial ou bombeiro, mas agora já está velho e leva dinheiro para casa porque precisa alimentar os filhos. “Eu me arrependo de não ter estudado mais porque vivo na humilhação para ganhar um trocado. Nem casa eu tenho, só pago aluguel na comunidade. Desemprego está grande, mas tendo leitura tudo fica mais fácil. Eu já tentei estudar, mas as pessoas que trabalham como guardador de carros aqui também ficavam falando que eu não podia sair mais cedo se não roubariam meu ponto. Tantas dificuldades acabei deixando o EJA de lado e hoje não sei nem ler e nem escrever”, detalha.
Para Caio Callegari, a população adulta também enfrenta o problema do analfabetismo. “Nesse ponto, a gente precisa pensar em estratégias para correr atrás dos prejuízos que o país causou na vida dessas pessoas. A educação de jovens e adultos tem sido deixada de lado como política pública e isso se torna trágico, já que muitas dessas pessoas não tiveram a oportunidade de estudar. A cada ano percebemos o declínio de matrículas e a pouca atenção dada ao ensino, que não consegue ser atrativo. Também é necessário que a estrutura dialogue com as necessidades dos alunos, principalmente mais velhos. Esses muitas vezes começaram a trabalhar muito cedo e ainda dependem do próprio esforço”.
Para o coordenador do Todos Pela Educação, não se pode mais tolerar o analfabetismo no Brasil. “É uma tragédia do século 20 e não faz sentido continuar existindo. O cidadão brasileiro não merece isso. Eu acredito que podemos erradicar esses dados vergonhosos até 2024 se nessas eleições o povo escolher que melhor tiver propostas para a educação”.