Palavra mais mencionada durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, a “cloroquina” é uma das estrelas da investigação contra a Saúde do Governo Federal, que busca analisar erros ou crimes de responsabilidade por parte da gestão bolsonarista durante a pandemia. Medicamento comprovadamente ineficaz no combate à Covid, não apenas contra o vírus, mas também no aspecto da sintomatologia, de acordo com profissionais da área, a cloroquina foi abertamente defendida por representantes do Governo, sobretudo pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que citou o medicamento em pelo menos 23 discursos oficiais.
Na última segunda-feira (17), pela primeira vez em 14 meses, um órgão do Ministério da Saúde se posicionou contra uso de cloroquina, ivermectina e azitromicina em ambientes hospitalares. O texto "Diretrizes Brasileiras para Tratamento Hospitalar do Paciente com Covid-19" já recebeu parecer favorável da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e pode ou não ser aprovado em até 10 dias. A menção foi a única de acordo com os profissionais e entidades internacionais de saúde desde o início da pandemia, declarada em 11 de março de 2020. No entanto, a pasta ainda não possui posicionamento oficial sobre o tratamento precoce com o uso desses medicamentos.
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De março de 2020 até agora, foram diversos pronunciamentos oficiais e extraoficiais sugerindo o uso da cloroquina no tratamento da Covid-19, ainda que o medicamento esteja associado ao crescimento do número de reações adversas e até algumas mortes por Covid. Confira abaixo, em ordem cronológica, o histórico do Governo Federal com o medicamento.
Março de 2020: a campanha da Secom e o G20
Em 21 de março de 2020, 10 dias após o anúncio da Organização Mundial da Saúde (OMS), Jair Bolsonaro falou publicamente, pela primeira vez, sobre as suas esperanças na eficácia da cloroquina. O remédio passou a ser cotado no tratamento da Covid-19 depois que as autoridades sanitárias oficiais estadunidenses disseram estar analisando o desempenho do medicamento em pacientes com a doença, mesmo sem comprovação científica e sob possibilidade de reações contrárias.
A declaração dos Estados Unidos havia ocorrido apenas dois dias antes, em 19 de março. No dia seguinte (20), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu nota contra o uso do composto no tratamento precoce da Covid-19, temendo a administração indevida e o desabastecimento do mercado.
Em entrevista à CNN, Bolsonaro lembrou, na época, que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) possuía 4 milhões de comprimidos da cloroquina. "Temos bastante para começar, mas é um medicamento barato. Não à toa, a Apsen (laboratório produtor do Reuquinol) está doando 10 milhões de unidades. Uma vez confirmada, vamos distribuir para todos os infectados", disse. A doação mencionada, segundo a farmacêutica, não aconteceu.
Houve também a reunião do G20, em 26 de março, que ocorreu por videoconferência. Em imagens divulgadas pelo Palácio do Planalto, Bolsonaro aparece segurando uma caixa de Reuquinol, medicamento cuja base é a hidroxicloroquina, ao lado do chanceler Ernesto Araújo. Neste mesmo dia, a Anvisa liberou pesquisa para investigar o uso do medicamento.
A primeira campanha oficial, divulgada pela Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), foi ao ar em 28 de março. No vídeo (abaixo), o órgão resume as ações do Governo no combate à pandemia entre 21 e 27 de março, entre a segunda e a terceira semana da crise. Segundo a Secom, foram distribuídas 3,4 milhões de unidades de cloroquina e hidroxicloroquina para tratar pacientes em estado grave.
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No mesmo dia em que a campanha foi liberada, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que fez alerta sobre os medicamentos como tratamento à Covid-19 e comumente usado no tratamento da malária. “Cloroquina não é uma panaceia. Cloroquina não é o remédio que veio para salvar a humanidade. Nós podemos ter mais mortes por mau uso de medicamento do que pela própria virose”, disse.
O posicionamento de Mandetta sobre o tratamento precoce com a cloroquina e a hidroxicloroquina foi um dos fatores que motivou a sua exoneração do cargo, pouco mais de duas semanas depois, em 16 de abril de 2020.
Ainda assim, a produção do medicamento seguia a todo vapor desde o dia 23 de março. Segundo o Ministério da Defesa, laboratórios das Forças Armadas queriam chegar à marca de meio milhão de comprimidos. O laboratório do Exército é detentor do registro da cloroquina. “As ações conjuntas permitirão acelerar a produção, de forma que sejam concluídos dois lotes por semana, o que representa cerca de 500 mil comprimidos”, explicou o Capitão de Mar e Guerra André Hammen à época. A produção de outros medicamentos foi interrompida para priorizar o tratamento precoce.
Estudo sobre cloroquina é interrompido após morte de pacientes
Ainda na primeira semana de abril de 2020, foram divulgados os resultados dos primeiros testes com hidroxicloroquina (combinado com a azitromicina) realizados por um grupo de pesquisadores no Amazonas em 81 pessoas infectadas pela Covid. Foi revelado que o coronavírus se manteve no sistema respiratório de pacientes em estado grave mesmo após o tratamento experimental, mostrando ineficácia do medicamento no tratamento precoce da doença.
O estudo foi interrompido depois que 11 pessoas morreram. Os pesquisadores descobriram que uma dose alta do medicamento pode levar a quadros severos de arritmia ou batimentos cardíacos irregulares.
A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, e também pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).
Na mesma semana, em 9 de abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enviou ao Ministério da Saúde e ao Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 uma nota informativa desaconselhando o uso de hidroxicloroquina no tratamento para coronavírus.
Durante a campanha ‘Ninguém Fica Para Trás’, a Secom divulgou ações emergenciais na pandemia referentes ao intervalo de 24 a 27 de abril. Em quadro, a secretaria informa que foi liberado o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para casos leves de Covid-19. Essa liberação refletiu na atualização do protocolo emitido pela Saúde e também divulgado pela Secom em maio, chamando a cloroquina de “esperança” e tratamento “promissor”.
"O Ministério da Saúde adotou um novo protocolo para receita da cloroquina/hidroxicloroquina. O medicamento, que já é adotado em diversas partes do mundo, é considerado o mais promissor no combate à covid-19", disse o texto, acompanhado de uma imagem que classifica a droga como "o tratamento mais eficaz contra o coronavírus".
Nos resumos de ações do mês de junho, houve apenas uma menção da Secom. Em 19 de junho, foi anunciado que pacientes com Covid-19 crianças, gestantes e adolescentes de grupo de risco entraram nas orientações para tratamento com cloroquina. No dia 26, a Anvisa autorizou início dos testes com os fármacos ruxolitinibe e remdesivir, ambos para o tratamento da Covid-19 em pacientes hospitalizados com quadro grave. Na primeira semana de julho, o presidente Jair Bolsonaro foi diagnosticado com o coronavírus e voltou a fazer propaganda gratuita do remédio.
No dia 4 de julho, o presidente disse que a hidroxicloroquina era o único tratamento possível enquanto não houvesse vacina para a Covid-19. A declaração foi feita durante entrevista ao Grupo ND de Santa Catarina. No dia 6, ele citou 17 vezes cloroquina e/ou hidroxicloroquina durante a coletiva de imprensa na qual anunciou que foi contaminado pelo novo coronavírus.
Horas depois, o chefe do Executivo postou um vídeo nas redes sociais em que aparece engolindo um comprimido, segundo ele, de hidroxicloroquina, o qual disse fazer efeito. Também foi uma falsa declaração do presidente a informação de que aproximadamente 100 mil pessoas infectadas pelo coronavírus no Brasil teriam sido curadas por uso do fármaco.
O mandatário nacional chegou a comemorar a notícia de que a Comissão Nacional de Saúde da China recomendou o uso de cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19, em agosto, sob provocações à imprensa.
Em setembro, Jair Bolsonaro sugeriu que o médico que não receitasse a cloroquina para tratar a Covid-19 fosse trocado pelo paciente insatisfeito. A declaração foi feita em uma entrevista durante sua viagem ao Vale do Ribeira no dia 4. No mesmo mês, o Ministério da Saúde já mencionava o tal “Dia D” contra a Covid, planejado para o dia 3 de outubro.
O esquema teve como slogan “Tratamento precoce é vida". A campanha de mobilização orientava que pacientes com sintomas iniciais da doença procurassem um médico e solicitassem o tratamento precoce, o "Kit Covid", com hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina, ivermectina e zinco. Pouco depois, se tornou público, através do próprio presidente, que mais de 200 funcionários do Planalto haviam sido infectados e aderido ao tratamento.
A partir de outubro, o tom de Jair Bolsonaro quanto ao tratamento precoce amenizou. Apesar de continuar sugerindo o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, a produção de vacinas contra a Covid-19 desacelerou o protocolo negacionista. A primeira nova menção do presidente sobre o medicamento ocorreu em Brasília, na frente do Palácio da Alvorada, no chamado “cercadinho”, onde discursa com frequência para a bolha bolsonarista. A um grupo de franceses, afirmou, falsamente, que no Brasil a cloroquina tem 100% de taxa de cura em casos leves.
A situação se repetiu pelo resto do ano de 2020, com mais declarações esporádicas do presidente sobre o tratamento precoce com a cloroquina e outros medicamentos ineficazes contra a Covid-19, inclusive, incentivando a compra sem prescrição.
O Brasil terminou o ano com cerca de 400,1 mil comprimidos de cloroquina em estoque, que estão parados no Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX) por falta de demanda dos Estados. O número corresponde a boa parte do que foi produzido entre 2015 e 2017, quando o remédio era fabricado exclusivamente para o tratamento da malária. Em 2020, cerca de 3,2 milhões de comprimidos foram produzidos.
O Governo Federal e a cloroquina em 2021
No ano da CPI da Covid-19, as declarações negacionistas não tiveram freio. Na última semana, próximo a um mês de trabalhos da comissão, ex-membros da equipe federal negam que o governo tenha feito sugestões de uso da cloroquina, apesar das constantes menções ao medicamento. Fabio Wajngarten e Eduardo Pazuello são dois dos “porta-vozes” de Bolsonaro durante a investigação.
Em janeiro, mais de R$1,3 milhão dos cofres federais foram utilizados para pagar ações de marketing com influenciadores sobre a Covid-19. O valor foi investido pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Comunicação (Secom) e inclui R$85,9 mil destinados ao cachê de 19 “famosos” contratados para divulgar estas campanhas em suas redes sociais.
Quatro influenciadores receberam um montante de R$23 mil para falar sobre “atendimento precoce”. A verba saiu de um investimento total de R$19,9 milhões da campanha publicitária denominada ‘Cuidados Precoce COVID-19’. A ex-BBB Flávia Viana recebeu, sozinha, R$11,5 mil, segundo os documentos obtidos.
No roteiro da ação, obtido pela Agência Pública através de um pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI), a Secom orientava a ex-BBB Viana e os influenciadores João Zoli (747 mil seguidores), Jéssika Taynara (309 mil seguidores) e Pam Puertas (151 mil seguidores) a fazer um post no feed e seis stories – todos no Instagram – dizendo para os seguidores que, apresentando sintomas iniciais, buscassem ajuda médica e exigissem o tratamento.
Além disso, só nos discursos oficiais (constam descritos no site do governo) desse ano, Jair Bolsonaro sugeriu o tratamento com a cloroquina e/ou com a hidroxicloroquina pelo menos cinco vezes, sem contar com menções extra-oficiais. A primeira foi em 4 de março, em um evento em Estrela d'Oeste, São Paulo, no qual o presidente falou que agora era "crime falar em tratamento precoce".
Em outro discurso oficial, no dia 10 de março, durante cerimônia de sanção de uma lei voltada à compra de vacinas pelo setor privado, aproveitou a oportunidade parar continuar recomendando o remédio ineficaz contra a Covid. O mesmo aconteceu nos dias 5 e 7 de abril.
A última menção em plataforma ampla e oficial foi feita em 14 de maio. Foi durante a cerimônia de entrega de títulos de propriedade rural no estado do Mato Grosso do Sul.
"Daí pintou o caso da cloroquina nesta pandemia. Quem é contra, é um direito dele. Agora, não vai querer criminalizar quem a use", disse o chefe do Executivo Federal.