A pandemia do novo coronavírus elevou em 84,5% o número de atendimentos do Procon-SP nos dez primeiros meses do ano em relação ao mesmo período de 2019. Segundo dados obtidos com exclusividade pelo Estadão, foram feitas 638.750 reclamações entre janeiro e outubro, muito mais que as 346.1858 no mesmo período de 2019. Mesmo se considerar todo o ano passado, a quantidade de queixas ainda foi menor: 412.928.
O setor de energia elétrica teve 85.036 queixas e lidera a lista de reclamações do Procon-SP em 2020. No ano passado, estava na 6ª colocação com 8.916 atendimentos. O salto quase dez vezes maior é reflexo da decisão da empresa Enel Distribuição São Paulo (Enel) de deixar de fazer a leitura dos relógios nas residências para fazer a cobrança pela média dos 12 últimos meses. "A Enel foi a vilã do setor de energia elétrica. A pandemia contribuiu indiretamente porque levou a empresa a adotar uma decisão equivocada diante do atual cenário", afirma Fernando Capez, diretor executivo do Procon-SP.
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"Quando se faz a cobrança pela média dos 12 meses anteriores, é claro que você consumiu menos energia na média do que em março, abril e maio, meses que ficou dentro de casa o dia inteiro, por exemplo. Aí em junho, você precisou pagar o que consumiu efetivamente mais a diferença dos três meses anteriores, uma conta cinco, seis vezes com valor maior. Os consumidores reclamaram. Coube ao Procon explicar que a decisão era errada, mas a cobrança estava certa e que uma solução seria parcelar a conta", explica Capez.
Já quem fechou estabelecimentos, por causa da quarentena, foi surpreendido com cobranças não esperadas. É o caso do empresário Frederico Batina, de 59 anos, que em março parou de trabalhar no escritório na Vila Sônia, zona sul da cidade. No mês seguinte, recebeu uma conta de luz com valor muito alto, mesmo sem utilizar o local. Ao reclamar com a Enel, soube que a leitura presencial do relógio de energia não tinha sido realizada, por causa da pandemia.
"A Enel suspendeu a medição. Recebi a conta com base nos 12 meses anteriores, valor superior ao que realmente deveria ser cobrado, já que o escritório não estava funcionando", afirma Batina, que posteriormente conseguiu ser ressarcido com valor acima de R$ 200.
A Enel esclarece que, desde julho, retomou a leitura presencial dos medidores de energia de todos os clientes. "Com isso, desde agosto, o número de reclamações por mês ingressadas no Procon-SP foi caindo mês a mês. Para efeito de comparação, o número de queixas teve uma queda de 90,6% na comparação entre julho e outubro", afirma.
A empresa justifica que, com o avanço da pandemia, entre o fim de março e junho, a distribuidora reduziu o número de leituristas nas ruas e emitiu as contas de energia pela média do consumo dos 12 meses anteriores. Segundo a Enel, a medida, autorizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), foi adotada para preservar a saúde dos profissionais da empresa e clientes, contribuindo com o isolamento social.
"Com a retomada da leitura presencial, os leituristas verificaram o real consumo dos meses em que o cliente foi faturado pela média e a diferença, a mais ou a menos, entre o que foi cobrado pela média e o real consumo, foi automaticamente lançada na conta de energia", informa. A Enel afirma ainda que continua oferecendo aos consumidores o parcelamento das contas em até 10 vezes, na própria fatura ou no cartão de crédito.
Cancelar viagem se tornou um transtorno
Dos dez segmentos que apresentam maior número de atendimentos pelo Procon-SP neste ano, pelo menos cinco foram impactados diretamente pela pandemia. Um deles é o setor de vestuário (37.392). As pessoas compraram mais roupas pela internet, mas as queixas foram principalmente pela logística de entrega dos produtos.
"Outro setor afetado foi de instituições de ensino (22.111). Perda de poder aquisitivo e mudança no paradigma de aula. A pessoa achava que tinha direito de pagar mensalidade reduzida porque a aula deixou de ser presencial e passou a ser remota. O segmento de móveis (17.239) também sofreu com atraso na produção e fornecimento ao comércio", afirma o diretor executivo do Procon-SP.
Também impactado diretamente pela pandemia, o setor de agências e operadoras de viagem aparece em7º lugar na lista do Procon-SP com 19.008 reclamações, alta de 66% em relação ao ano anterior.
Com o fechamento da fronteira em junho, a servidora pública Camila Reis Santana, de 43 anos, passou sufoco para cancelar a compra de duas passagens aéreas para voos saindo de Campinas, interior de São Paulo, para Lisboa, com data de ida para 9 de setembro deste ano e volta no dia 26 do mesmo mês, realizada em novembro de 2019 pelo site da MaxMilhas.
"Ligações telefônicas, formulários do site, e-mail e até tentativa via chat, esse último sempre congestionado. Tentei cancelar as passagens também diretamente com a companhia aérea, que me informou que o pleito só poderia ser feito diretamente com a Max Milhas. Recebi uma única resposta dúbia por e-mail, que não deixava clara a possibilidade de uso do créditos de cancelamento. Mas depois disso, o atendente parou o atendimento e não consegui cancelar minhas passagens", relatou Camila, que teve o caso resolvido só em 15 de setembro, ou seja, após a data da viagem.
Diante dos impactos sem precedentes provocados pela covid-19, a MaxMilhas afirma que ainda está lidando com um grande número de cancelamentos e remarcações de passagens, que "nos dois primeiros meses da pandemia atingiu o total de cancelamentos que a empresa teve em todo o ano de 2019." No caso da consumidora Camila, a empresa informa que realizou contato com a cliente e disponibilizou a devolução do valor em forma de crédito para que ela o utilize em uma viagem futura.
A plataforma de pesquisa, comparação e intermediação de passagens aéreas diz ainda que adotou uma série de medidas para dar apoio aos clientes. "Aceleramos a automatização dos processos de cancelamento e alteração pelo site."
Em nota, a Associação Brasileira de Agências de Viagens (Abav) afirma os clientes que tiveram as viagens afetadas pela pandemia têm optado por remarcações ou crédito para viagens futuras. "A lei nº 14.046 assegura ao consumidor a remarcação ou crédito para uso futuro, e caso uma dessas duas possibilidades não possa ser ofertada pelos prestadores de serviços, o consumidor pode pedir o reembolso dos valores contratados e pagos, deduzidos os valores da remuneração pelos serviços de agenciamento e intermediação já prestados aos consumidores."
Também na lista dos dez assuntos mais demandados deste ano, o segmento de diversão, lazer e cultura aparece em 9º lugar e foi mais um setor impactado diretamente pela covid-19. "O cancelamento de eventos foi provocado pela pandemia. Se não tivesse o novo coronavírus, não teríamos esse registro", diz Capez.
A Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape) afirma que os setores de cultura, entretenimento e turismo "são os mais prejudicados pela pandemia, como o próprio governo federal reconheceu na Portaria 20.809" da Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade. "Em 24 de agosto, foi sancionada a lei 14.046, que dispõe sobre o adiamento e o cancelamento de serviços, reservas e eventos de turismo e cultura, medida considerada oportuna e necessária para pacificar os setores diante das dificuldades e complexidades geradas pela pandemia."
Segundo a Abrape, os setores de cultura e entretenimento, que são responsáveis por 4,32% do Produto Interno Bruno (PIB) e movimentam R$ 200 bilhões anualmente, tiveram mais de 300 mil eventos cancelados ou adiados até outubro, o que significa prejuízo estimado de R$ 90 bilhões e aproximadamente o desemprego de 450 mil trabalhadores - formais e informais. No turismo, o prejuízo será de aproximadamente R$ 161,3 bilhões em 2020 e 2021, conforme estudo da Fundação Getúlio Vargas Projetos (FGV Projetos).
Sem efeito direto com a covid-19
Em 2º lugar no ranking com 61.220 atendimentos, o segmento de telecomunicações, que no ano passado liderou a lista, registrou aumento de 11% em relação ao ano anterior, mantendo queixas comuns de falha no funcionamento do serviço e cobranças indevidas.
Em nota, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) afirma que promove, ao lado dos outros órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, o aperfeiçoamento das relações de consumo no setor de telecomunicações. "A agência mantém uma central de atendimento que recebe reclamações de consumidores contra prestadoras, elabora normas e fiscaliza a execução de serviços", acrescenta. Ainda segundo a Anatel, os dados dos Procons são também importantes insumos para os diagnósticos do setor realizados pela agência. A Anatel afirma ainda que as ouvidorias das operadoras de telefonia também "buscam facilitar o processo de resolução de reclamações para o consumidor."
Em 3º lugar na lista do Procon-SP, as instituições financeiras somaram 49.520 atendimentos, alta de 22% em relação ao ano anterior. "As queixas contra instituições financeiras aumentaram porque começaram a fazer crédito consignado sem autorização do cliente e cadastrar chave Pix (novo sistema de pagamento instantâneo), sem cliente pedir. Práticas abusivas por parte dessas empresas", explica o diretor executivo do Procon-SP.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirma que junto com seus associados combate más práticas que estejam em desacordo com a legislação vigente e as normas estabelecidas pelos órgãos reguladores. Em parceria com a Associação Brasileira de Bancos (ABBC), foi criado um sistema de autorregulação específico para tratar do crédito consignado. "Entre 2 de janeiro e 8 de novembro, foram aplicadas 161 punições contra correspondentes bancários, em razão de reclamações de consumidores sobre oferta irregular do produto, sendo que dois deles foram suspensos de forma definitiva por ofertar crédito consignado em nome dos bancos."
Ainda segundo a Febraban, muitos consumidores recorrem aos órgãos de defesa do consumidor ou ao Banco Central, sem procurar os bancos, muitas vezes por desconhecer o serviço de atendimento ao consumidor e das ouvidorias das instituições financeiras. "Os SACs dos bancos receberam, em média, cerca de 2,6 milhões de ligações por mês no 2º trimestre deste ano, redução de 21% na comparação com o mesmo período do ano anterior. O tempo de solução também tem reduzido, com 92% das reclamações respondidas no mesmo dia, e 96% em até 3 dias úteis."
Comércio online
Pouco mais de um terço dos atendimentos deste ano estão relacionados com o comércio eletrônico. Até 17 de outubro foram registradas 241.887 reclamações contra 78.419 em todo o ano de 2019, o que representa aumento de 208%. Entre as principais queixas estão atraso ou não entrega do produto, cobrança indevida ou abusiva e produto com vício.
"Muitas empresas não estavam preparadas para atender o aumento da demanda, principalmente por compras online. Com a quarentena, muitas pessoas também passaram a fazer compras pela internet, o que aumentou também a procura pelo serviço", afirma Capez.
Para amenizar transtornos aos consumidores durante a Black Friday que acontece em estabelecimentos comerciais físicos e online, o Procon-SP está realizando reuniões com as principais empresas que promovem promoções e descontos na data. "Preventivamente, estamos fazendo reuniões com setores e pedindo que estendam a promoção da sexta-feira do dia 27 de novembro para toda a semana, para que o consumidor interessado em participar tenha tempo e também não se aglomere nas lojas (físicas)", diz o diretor executivo do Procon-SP.
A fim de evitar dor de cabeça, o consumidor deve comparar preços entre lojas para avaliar se o valor é realmente promocional, checar endereço da empresa que oferta produtos, observar o prazo de entrega e conferir as políticas de troca de mercadorias. Segundo o Procon-SP, no ano passado, foram registradas durante a data 2.360 reclamações, sendo o principal problema relatado a demora ou não entrega do produto, com 41,86% do total das queixas.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.