Dias depois que o estado americano de Ohio proibiu o aborto, a médica Mae Winchester recebeu uma paciente que necessitava interromper a gravidez para salvar sua vida.
Em 24 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou o direito ao aborto que vigorava há quase meio século.
Com a decisão, muitos estados conservadores proibiram ou restringiram amplamente os procedimentos.
Com esta virada histórica, o panorama legal deixou muitas lacunas e "um nível significativo de estresse" na profissão, afirma Harry Nelson, advogado especialista na área médica.
Em Ohio, onde Winchester trabalha, os abortos ainda são permitidos, mas somente até as seis semanas de gravidez e o entendimento sobre "emergência médica" é ambíguo.
Sua paciente já tinha ultrapassado esse prazo, então a médica precisou consultar o departamento jurídico do hospital.
"Sei o que devo fazer como médica. Mas do ponto de vista legal, como a protejo, como me protejo, como protejo a instituição, as enfermeiras e anestesistas envolvidas no caso?", questionou.
"Afeta a todos", declara esta obstetra à AFP.
"Confusão"
As leis que proíbem o aborto preveem sanções substanciais para os profissionais de saúde. As penas variam de multas caras a até 10 anos de prisão.
A ameaça de processos e os custos legais levam a "uma situação estranha, na qual os médicos ficam tensos ao prestar um atendimento legítimo em casos potencialmente mortais", destaca Nelson.
O governo do presidente Joe Biden tentou trazer a estes profissionais um pouco mais de segurança ao garantir que a lei federal "prevalece" sobre a estatal em emergências.
Se um médico acreditar que um aborto é necessário para "estabilizar" uma emergência, deve praticá-lo, escreveu o ministro da Saúde, Xavier Becerra, à equipes dos serviços de urgência do país.
No entanto, o estado do Texas já recorreu aos tribunais, acusando o governo democrata de querer "transformar cada sala de emergências do país em uma clínica de aborto sem data marcada".
O presidente da poderosa organização de planejamento familiar Planned Parenthood, Alexis McGill Johnson, estima que esta denúncia aumenta "a confusão e cria perigo de morte em caso de gravidez ectópica, septicemia, entre outros".
"Medo"
Mais de 90 procuradores locais disseram que não apresentarão denúncias nestes casos em suas jurisdições, mas outros estão determinados a fazê-lo.
O procurador-geral de Indiana, um ultraconservador, ameaçou processar uma ginecologista que ajudou uma criança de 10 anos a abortar após um estupro.
A menina precisou viajar de seu estado Ohio porque excedeu as seis semanas de gravidez. As interrupções voluntárias de gravidez continuam legais em Indiana, mas o procurador-geral Todd Rokita acusou a médica de descumprir com a obrigação de informar sobre o caso.
No fim, os advogados da médica comprovaram que ela havia informado.
Nelson estima que este caso mostra como alguns procuradores, funcionários eleitos, podem usar "táticas intimidatórias" para desmotivar os médicos.
"Entre a cruz e a espada"
Os médicos não são os únicos que correm riscos.
No Texas, Idaho e Oklahoma, as leis autorizam processos civis contra qualquer pessoa que ajude mulheres a abortarem, o que poderia afetar um taxista ou até mesmo uma instituição que financie o procedimento.
As leis são vagas e isso traz dificuldades também em outras situações, como por exemplo, quando o tratamento para um câncer ameaçar a gravidez.
Desde a decisão da Suprema Corte, os ginecologistas se sentem presos "entre a cruz e a espada", explica Kristin Lyerly, do Colégio de Ginecologistas dos EUA que, junto com 75 organizações, denuncia interferências legislativas no trabalho dos médicos.
"O que devemos fazer: realizar más práticas ou ser presos por praticar um aborto?", questiona.