São cerca de 20h quando os integrantes da Caravana do Tio Chico começam a se concentrar no apartamento de uma das organizadoras. O grupo, que tem como finalidade levar um pouco de alimento, todas as últimas sexta-feira do mês para os moradores de rua de Jaboatão dos Guararapes e do Recife, está prestes a começar mais uma ação natalina especial. Essa caravana, composta por cerca de 35 pessoas, leva algo muito maior e que não tem preço para essa parte da sociedade excluída: o afeto e amor ao próximo.
A rodada da Caravana Tio Chico do mês de dezembro teve um toque especial: desta vez fizeram uma ceia de Natal simbólica para cada morador de rua com um jantar especial. No cardápio, nada de sopa e sanduiche, como de costume. A escolha foi risoto de frango. Se por si só, o prato inusitado surpreende, cada um também ganhou um kit especial que contém mini-panetones, bolacha e mais outros produtos, além de ganhar água, suco e coca-cola.
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A caravana surpreende ainda mais pelo fato de que a equipe sai do bairro de Candeias, no ponto de concentração, em uma fileira de carros. Os chamados “olheiros” avisam na hora que os veículos devem parar ao avistar um morador de rua. A entrega é feita e seguem o caminho, que pode se estender até o centro do Recife. Um acordo existe: as entregas só podem ser encerradas com a entrega de todos os produtos. Isso significa que pode levar até mais de sete horas percorridas em linha reta. Muitas das vezes a “ronda do amor” vira a madrugada terminando às 4h.
Caravana marcou o Natal de moradores de rua
Na primeira parada, um morador de rua dorme, mas é acordado com carinho por uma parte do grupo para fazer a entrega. Seu Luiz Severino, 63 anos, descansava ao lado de uma bíblia. Questionado sobre o significado, ele falou que é para pedir sempre a “proteção” de Deus. Seu Severino contou que ganhou a escritura sagrada de uma senhora que desconhecia. Hoje a bíblia se tornou também companhia.
Sobre o que pediria neste Natal, caso pudesse, seu Severino foi direto. “O que eu posso pedir se eu não tenho o básico?”, indagou. Mas, ele pensa e pouco depois responde: “Meu desejo é um trabalho, é o que eu desenho para eu poder ter onde morar”.
Outro fato que faz o trabalho ser ainda mais admirado é que a caravana não recebe nenhum apoio de empresa ou qualquer outro tipo de patrocínio. As doações acontecem em um trabalho árduo e de formiguinha pedindo para amigos compartilhando grupos de Whatsapp. Um trabalho que requer paciência e união.
Na parada seguinte, a caravana encontra uma família ainda catando entre os lixos encontrados, o que era possível para reciclagem. Uma das integrantes se aproxima de uma com carinho e lhe estende a mão para cumprimentar. A catadora, que se chama Maria Janeide, fica admirada e responde: “Mas como vou lhe dar a mão? Eu estou com a mão suja”, disse parecendo não acreditar muito no que estava acontecendo. “Somos iguais”, respondeu a voluntária.
A viagem dos amigos que pregam a bondade continua. Em mais uma entrega de kits, um dos excluídos pergunta: “Vocês são de qual igreja? Você são pessoas boas”. Um dos membros responde rapidamente: “Nós somos de todas as igrejas”.
Os moradores de ruas parecem agradecidos. “Essa é a verdadeira aula de Deus”, disse outro sem-teto. Em casa parada, a emoção toma conta. É já rotina, em um dos casebres onde vivem seis pessoas, no bairro de Piedade, uma parada para uma oração. Todos se abraçam e rezam. Murilo, um dos moradores, é conhecido e muito querido pelo grupo. Os olhos chegaram a se encher de lágrimas quando escutou seu nome sendo ecoado. “São todos bênçãos e o que desejo a todos que fazem o bem e muita felicidade, paz e muitos anos de vida”, falou.
Levar o amor a quem precisa
A cantora Felicidade Cordel, uma das idealizadoras, conta que a caravana existe há mais de 20 anos e que foi repassada entre gerações, mas que estava parada há cinco anos. A decisão de voltar a fazer o bem aconteceu há um ano juntando novamente amigos e família. “É uma caravana ecumênica que reúne Chico Xavier, Francisco de Assis e o papa Francisco. É uma caravana que recebe todas as religiões, para fazer o bem, levar amor e praticar a caridade, uma caravana que tem muitos jovens com o intuito sempre positivo”.
Felicidade conta que todo o trabalho é recompensador. “A gente sempre fala que a comida é só um meio da gente chegar até eles porque o alimento, em uma sexta do mês, não mata a fome deles, mas estamos fazendo a nossa parte. Eu sempre acredito que a miséria humana é a falta de amor entre os homens. Então, quanto mais a gente doa amor para as pessoas, eu acho que mais eles são recebidos e enchidos desse sentimento. Talvez não mate a fome, mas faz muito bem para eles e para a gente também. Eles não esquecem e a gente faz amigos na rua. Voltamos super felizes sempre terminando com outra vibração e com muitas histórias para contar. A gente acha que vai para a rua para levar coisas boas para eles, mas na verdade é a gente que recebe muito mais coisas boas do que o que doamos”, contou.
Quem quiser conhecer mais o projeto e fazer parte pode acessar o Facebook e o Instagram Caravana Tio Chico. “Primeira vez a gente nunca pede doação, pede para que venha para sentir como é e automaticamente começa a doar depois, mas a gente precisa mais de gente doando amor do que doação material”, ressaltou Felicidade.
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Em busca de um mundo melhor
A designer de interiores Katherine Escorel, que também é voluntária, declarou que um mundo melhor só é possível a partir do momento que você olha o próximo com sensibilidade e amor. “Um mundo melhor começa quando você deixa de olhar um morador de rua como uma ameaça e sim como um ser humano. É você passar por um local e ver aquelas pessoas não como coitadas, mas sim como um irmão que está passando por uma provação e que você pode, no mínimo, desejar um bom dia e dar um aperto de mão”.
Escorel ressaltou que a comida que eles recebem vai alimentar mais do que o corpo, a alma. “É muito mais o emocional e isso que é o importante: não é só dar o alimento, é dar o afeto. Você deixa de ver aquilo como caridade quando você percebe que aquilo foi importante: a palavra, o olhar e o carinho”.
“Então, acho que a nossa missão aqui é evoluir pessoalmente, espiritualmente e emocionalmente ajudando na evolução do próximo. Mais do que nunca numa época dessa onde Jesus é o maior exemplo porque ele sempre pregou sobre pensar no próximo. Esta caravana é especial”, finalizou.
A corretora de seguros Luciana Cavalcante lembrou que não há diferenciação entre as pessoas. “A gente não pode enxergar quem é que está recebendo. Não há essa distinção. Todos merecem amor e o alimento. Acredito que o que fazemos deveria ser regra e não exceção”, ressaltou.