O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF/RJ) entrou com ação civil contra o ministro da Cidadania Osmar Terra pela prática de ato de improbidade administrativa. A ação contesta a edição da Portaria no 1.576, de 20 de agosto de 2019, que suspendeu, “pelo prazo de 180 dias, prorrogável por igual período”, um edital para seleção de projetos audiovisuais que seriam veiculados nas TVs públicas.
Segundo apurou o MPF/RJ, a Portaria foi motivada por discriminação contra projetos com temática relacionada a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis – LGBTT, dentre os quais os documentários “Sexo Reverso”, “Transversais”, “Afronte” e “Religare Queer”, desmerecidos pelo presidente da República em vídeo publicado no dia 15 de agosto de 2019.
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A suspensão do concurso causou, segundo apurado no inquérito civil, dano ao patrimônio público federal no valor de R$ 1.786.067,44, referente aos gastos já efetuados com sua realização.
A ação do MPF pede a anulação da Portaria e a conclusão do concurso, e ainda a condenação do Ministro Osmar Terra nas penas da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), a saber:
a) ressarcimento integral dos valores dispendidos com a realização do concurso referente à Chamada Pública BRDE/FSA – PRODAV – TVs Públicas – 2018, apurados em R$ 1.786.067,44 (um milhão, setecentos e oitenta e seis mil, sessenta e sete reais e quarenta e quatro centavos), monetariamente atualizados;
b) perda da função pública exercida;
c) suspensão dos direitos políticos por oito anos;
d) pagamento de multa civil em valor equivalente a duas vezes o valor do dano causado;
e) proibição de contratar com o Poder Público Federal ou dele receber benefícios, incentivos fiscais ou creditícios, pelo prazo de cinco anos.
Fatos apurados pelo MPF - Os fatos narrados na ação do MPF constam de inquérito civil com mais de novecentas páginas, instaurado para investigar a prática de eventual censura e discriminação na suspensão da Chamada Pública BRDE/FSA/PRODAV – TVs Públicas 2018, voltado à “seleção, em regime de concurso público, de projetos de produção independente de obras audiovisuais seriadas brasileiras, com destinação inicial para os canais dos segmentos comunitário, universitário, e legislativo e emissoras que exploram o serviço de radiodifusão pública e televisão educativa”.
Coordenado pela Ancine, o concurso foi iniciado em março de 2018 e, em agosto de 2019, quando foi editada a portaria ministerial, estava em sua fase final. Contemplava projetos variados, agrupados em catorze blocos temáticos (“Livre”, “Ficção-Profissão”, “Ficção-Histórica”, “Sociedade e Meio Ambiente”, “Raça e Religião”, “Diversidade de Gênero”, “Sexualidade”, “Biográfico”, “Manifestações Culturais”, “Qualidade de Vida”, “Jovem”, “Documentário Infantil”, “Animação Infantil” e “Animação Infanto-Juvenil”).
Consta do processo administrativo do concurso que 801 propostas estavam inscritas. Na fase de avaliação, 613 propostas passaram pela análise de 121 pareceristas selecionados através de edital público. Conforme as regras do edital, foram classificados os cinco projetos com melhor pontuação para cada bloco temático/região, totalizando 289 produções.
Segundo as regras do edital, o Ministro da Cidadania e o Secretário Especial de Cultura, enquanto órgãos de direção superior, não participam legalmente do processo de seleção dos projetos. Todavia, de acordo com o que foi apurado, no dia seguinte à manifestação do Presidente da República, o Ministro Osmar Terra determinou a elaboração de pareceres sobre minuta de portaria de suspensão do concurso, justificando, para tanto, que a medida era necessária para a recomposição dos membros do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual.
Ouvido pelo MPF no último dia 26/09/19, o ex-Secretário Especial de Cultura, José Henrique Pires, apresentou cópia de documentos do processo administrativo, e relatou que recebeu um pedido por parte do chefe de gabinete do Ministro, para que analisasse e se manifestasse “com urgência” sobre a minuta da portaria. Segundo a testemunha, a minuta não se encontrava devidamente justificada e tratava-se, em seu entender, de “mais uma tentativa de chancelar o que o presidente havia dito, isto é, não veicular conteúdos que não lhe agradem”.
“O Ministro, em declarações posteriores, disse que não tinha a obrigação de seguir o que um funcionário do governo anterior havia falado, mas isso não é verdade, pois o concurso em andamento era o resultado de um conjunto de deliberações feitas pelo Conselho Nacional de Cinema e pelo comitê gestor do FSA”, afirmou a testemunha.
O ex-secretário Especial de Cultura afirmou ainda ter “alertado ao Ministro que posições de censura poderiam causar problemas de ordem jurídica, sem falar no prejuízo causado às pessoas que, de boa fé, participaram do concurso, e que estão sem acesso aos recursos previstos”.
A falta de justificativa para a edição da Portaria também foi apontada por escrito pelo órgão de controle interno do Ministério da Cidadania, mas mesmo assim o Ministro manteve a determinação de suspender o concurso em sua fase final.
Segundo informou a ANCINE ao MPF, a União já gastou com a Chamada Pública BRDE/FSA/PRODAV – TVs Públicas a importância de R$ 1.786.067,44.
Ato de Improbidade - Afirma a petição inicial da ação que o verdadeiro motivo da suspensão foi impedir que os projetos mencionados pela presidência da República sagrassem-se vencedores. Como não havia meio legal de impedir que somente os quatro projetos fossem excluídos do concurso em sua fase final, a “solução” encontrada foi a de sacrificar todo o processo.
Como registra a ação, além do dano ao Erário causado pela suspensão do concurso, “a discriminação contra pessoas LGBT promovida ou referendada por agentes públicos constitui grave ofensa aos princípios administrativos da honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade as instituições”. A ação lembra que em junho de 2019 o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADO 26/DF, afirmou expressamente que “os homossexuais, os transgêneros e demais integrantes do grupo LGBT têm a prerrogativa, como pessoas livres e iguais em dignidade e direitos, de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero. (...) O Estado não pode adotar medidas nem formular prescrições normativas que provoquem, por efeito de seu conteúdo discriminatório, a exclusão jurídica de grupos minoritários que integram a comunhão nacional.”