Quando faz o caminho de volta da Neo Química Arena para casa, Juliana Prado, 30 anos, geralmente está exausta, tanto que precisa se isolar em algum canto e ouvir uma música tranquila para recuperar as energias depois de apoiar o Corinthians. No estádio em Itaquera, na zona leste da capital paulista, ela se mistura à multidão, canta, sofre e joga junto com o time.
Juliana tem um grau leve de autismo, por isso a exposição à bagunça de um estádio tende a ser um pouco desgastante, mas a paixão dela pelo futebol e pelo time alvinegro é maior. O sentimento a faz voltar continuamente à arena corintiana, levando uma faixa na qual está escrito "Autistas Alvinegros".
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O corintiano mais atento notou que, desde o primeiro duelo contra o Santos, pelas oitavas da Copa do Brasil, no fim de junho, a faixa aparece estendida em todos os jogos da equipe na Neo Química Arena. Embora conversem com uniformizadas do Corinthians para organizar eventos e estreitar laços, os Autistas Alvinegros não são uma torcida organizada. Eles se definem como um movimento de inclusão social.
"A gente quer ser conhecido mesmo como a torcida da inclusão, que futuramente possa organizar projetos e encontros inclusivos. Nosso intuito é usar o futebol para trazer a imagem do autismo", explica Juliana, funcionária do setor administrativo dos Correios.
O propósito principal da organização, ela reforça, é dar visibilidade à causa por meio do futebol. "Infelizmente, o autismo é pouco visível, pouco conhecido, principalmente se for o autismo leve. O pessoal não sabe identificar ainda uma pessoa autista", constata. "Se todos se unirem nessa causa, os autistas vão ter mais acessibilidade aos estádios para poderem se sentir mais confortáveis".
"Essa faixa abriu o caminho", entende Rafael Souza Lopes. O auxiliar de expedição, de 35 anos, criou o movimento junto com Juliana há pouco mais de três meses, em 2 de abril, Dia Mundial da Conscientização do Autismo, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2007.
"A ideia do movimento veio pelo amor ao Corinthians", resume Rafael, feliz com a adesão ao projeto. A iniciativa ganhou corpo e os torcedores, mesmo os que não são autistas, abraçaram a causa. Hoje, oito pessoas compõem uma espécie de diretoria da torcida. Há um grupo de WhatsApp com cerca de 140 participantes, entre pessoas com autismo, familiares de autistas e psicólogos, usado para compartilhar informações a respeito do tema, além de um perfil recém-criado no Instagram com mais de 2 mil seguidores.
"Já recebemos relatos de pessoas emocionadas quando viram nossa faixa estendida no estádio", relata Rafael. "A gente tem recebido bastante mensagem de outros torcedores. Teve até vários palmeirenses que vieram nos elogiar. São grupos rivais, mas é o que eu sempre respondo: essa causa vai além de clube", reforça Juliana.
Os dois torcedores se descobriram autistas tardiamente. Ela, aos 29, e ele, aos 33. "Existem muitas razões pelas quais os indivíduos podem não ter recebido um diagnóstico de autismo quando eram crianças. Uma razão é que os critérios de diagnósticos mudaram ao longo do tempo. Além disso, a conscientização sobre o autismo costumava ser menos difundida e muitos indivíduos que atualmente atendem aos critérios podem não ter sido avaliados quando crianças", explica André Cavallini, médico da Clínica Gravital, que atende pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e usa terapias à base da cannabis para tratar esse transtorno no desenvolvimento do cérebro em alguns casos.
ESPAÇO PARA AUTISTAS
A lista é curta, mas há clubes preocupados com seus torcedores autistas. Na Neo Química Arena, por exemplo, existe um espaço destinado a acomodar corintianos com TEA. Situada no setor Oeste Superior, a sala tem paredes e janelas com isolamento de som, bem como atividades desenvolvidas para autistas e deficientes intelectuais. Além disso, o portador de autismo tem direito a um ingresso gratuito e até três bilhetes com desconto de meia-entrada para seus acompanhantes.
Rafael e Juliana conseguem se misturar ao "bando de loucos" porque são autistas de "nível leve". O alarido no estádio incomoda, mas não impede que estejam nas arquibancadas. No caso dele, o "hiperfoco" no futebol ajuda a reduzir o incômodo.
"É um fenômeno que reflete a absorção completa de uma pessoa em uma tarefa, a um ponto que parece ignorar completamente ou se desligar de todo o resto", elucida Cavallini. "Sou fissurado no Corinthians, então mesmo que o ruído me faça mal eu suporto porque tenho prazer de estar lá", diz o corintiano.
No Paraná, o Couto Pereira, estádio do Coritiba, inaugura em agosto uma sala de acomodação sensorial. O espaço será destinado para pessoas autistas e seus familiares. O clube levantou recursos para construir a estrutura por meio de um leilão das camisas, utilizadas pelos jogadores nas finais do Campeonato Paranaense deste ano, com o símbolo do autismo.
A ação aconteceu por meio de uma parceria do clube com o Instituto ICO, uma associação sem fins lucrativos voltada ao atendimento de pessoas autistas que promoveu o leilão das camisas. "A ação do Coritiba é de grande alcance: futebol é o coração do país", afirma Elyse Matos, presidente e fundadora do ICO.
Ela conta que a campanha foi tão bem-sucedida que arrecadou mais de R$ 100 mil, gerando excedente. O dinheiro que sobrou, fruto de doações de patrocinadores e do leilão, foi doado para a construção de uma sala de integração sensorial para o ambulatório da prefeitura de Curitiba. No Recife, o Náutico reservou uma área no Estádio dos Aflitos para torcedores com TEA.
FOGO SERRANO, A TORCIDA PIONEIRA
Se corintianos, torcedores do Coritiba e do Náutico têm um espaço adaptado para autistas, o botafoguense ainda briga pela construção dessa área no Engenhão. Um dos que encampam essa luta é o bancário Walter de Souza Azevedo, de 51 anos. Morador de Miguel Pereira (RJ), ele se tornou pioneiro quando fundou a Fogo Serrano, primeira torcida do País cujas bandeiras, faixas, adesivos e camisetas expõem o símbolo do autismo.
"Tento falar, mas o Botafogo não me ouve. Não temos nenhum apoio do Botafogo, infelizmente. Eu já mandei carta para o Botafogo pedindo um lugar apropriado não só para autista, para o deficiente visual e o deficiente auditivo", reclama Walter, pai de Lucas, garoto de 11 anos com TEA.
"Tentei ajudar não só meu filho, mas outras crianças com autismo, inclusive que eu via no colégio dele. Eu via que existia muita desinformação", observa o bancário, explicando a origem da Fogo Serrano, que nasceu graças ao amor de Walter pelo Botafogo e por Lucas.
"Eu quis juntar o amor que eu tenho pelo meu filho com a paixão que eu tenho pelo Botafogo". A torcida acabou ajudando no desenvolvimento do jovem botafoguense, hoje mais desinibido. "Com seis, sete anos de idade, ele não cantava. A primeira música que ele cantou foi o hino do Botafogo", conta.
O grupo de inclusão social já amealhou mais de 500 botafoguenses. A grande parte deles não é autista, mas se dedicam à causa. Na torcida estão sete crianças com TEA e dois adultos, além de um deficiente visual.