Machismo, feminismo, cultura LGBTQIA+. Esses são conceitos trabalhados durante a eletiva ‘Introdução ao Estudo de Gênero’ ofertada na Escola Estadual de Referência em Ensino Médio (EREM) Frei Caneca, localizada no município de Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife. Com ementa própria, idealizada pela educadora de apoio e professora de história Myllena Lyra Valença, a eletiva traz conceitos básicos de gênero e sexualidades a serem trabalhados com os alunos do ensino médio inscritos na disciplina. No projeto, também estão as professoras Alessandra Lyra Valença, que leciona química e fora responsável pelo núcleo de estudos de gênero na instituição de ensino, e Jéssica Pereira da Silva, docente da disciplina de língua portuguesa.
“A temática é muito importante e os alunos precisam ter acesso a ela. Na eletiva, os estudantes conseguem problematizar e é possível trazer esses conteúdos para dentro da carga horária dos professores. Nesta eletiva, a gente começa com alguns conceitos básicos: patriarcado, machismo, a sigla LGBTQIA+, o que é cada uma dessas categorias. É algo muito dinâmico e a gente parte também do conhecimento que parte delas e deles [alunos]. As próximas etapas da eletiva, que provavelmente será no segundo semestre, terá feminismo negro, teoria queer e transfeminismo”, explica Myllena Lyra à reportagem.
##RECOMENDA##
Educadora de apoio e professora de história Myllena Lyra Valença. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
O acesso a essas temáticas nas escolas estaduais de Pernambuco é uma premissa que existe desde o surgimento das Escolas de Referência com a implantação dos Núcleos de Gênero. Em entrevista ao LeiaJá, a coordenadora da Unidade para as Relações de Gênero e Sexualidades (UNERGS), vinculada à Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE), Aline Malta, calcula que cerca de 300 escolas da rede estadual possuem esses núcleos. Além disso, apesar do retrocesso nacional vivido nos últimos seis anos, ela ressalta que Pernambuco foi na contramão ao dar continuidade aos debates no ambiente escolar.
“A discussão acerca de gênero e sexualidades sempre existiu e vai existir. No entanto, essas questões não podem ser pautadas pelo 'achismo', é preciso ter embasamento. Muitas pessoas, para deslegitimar essa discussão, alegam que a escola não é espaço para isso e que os pais devem assumir esse debate. Entretanto, é necessário destacar que as escolas são espaços para essas discussões, as escolas são espaços para debater ciência, entre outras coisas”, frisa.
Diante desses 'achismos' e preconceitos sobre a temática, as professoras da EREM Frei Caneca apontam que poucos alunos ficaram interessados pela eletiva, que possui uma dinâmica de que, para ter acesso à disciplina, o estudante precisa realizar uma inscrição. De acordo com Alessandra Lyra, o tímido quantitativo de adolescentes que optaram pela iniciativa reflete na participação no debate em sala de aula. “É sempre o mesmo grupo que participa das discussões”, salienta.
A docente também ressalta que muitos discentes foram surpreendidos pelo formato e conteúdos da eletiva. “Muitos alunos chegaram a dizer que ficaram surpresos com a disciplina porque acharam que era uma coisa quando, na verdade, é outra. Tem também os que dizem que a eletiva está sendo a melhor e que não esperavam que a gente iria discutir esses temas de uma forma diferenciada. É nesse momento que a gente vê que, apesar da resistência, eles estão engajando os debates e espero que a repercussão seja grande ao ponto deles realmente escolherem a eletiva”.
Professora Alessandra Lyra Valença. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Questionada sobre os motivos das temáticas serem trabalhadas por meio de uma eletiva, Aline Malta afirma que conteúdos que abordam gênero e sexualidades estão previstos nas normativas educacionais do Estado em “todas as disciplinas de forma integrada, nas trilhas [em consonância ao Novo Ensino Médio] e devem estar presentes no Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas”.
Ademais, à reportagem, a coordenadora da UNERGS esclarece que as Gerências Regionais de Educação (GREs) trabalham por demanda, o que justifica a ausência do tema e de Núcleos de Gênero em algumas unidades de ensino de Pernambuco. “Nem todo mundo quer discutir”, expõe.
Ao LeiaJá, Aline Malta salienta que o Estado promove um debate qualificado acerca dos temas e, mais uma vez, reforça a importância da discussão no ambiente escolar. “Não há ilegalidade nas ações do Estado. Todo esse debate está previsto em Leis e normativas. Pernambuco está entre os 10 estados com o maior índice de violência, o período de pandemia colocou mulheres e crianças em situações de vulnerabilidade. Elas estavam sucintas à violência doméstica. Trabalhar gênero e sexualidade nas escolas vai muito além dos conteúdos. É nesses espaços que, muitas vezes, há essa percepção de violência, a denúncia”.
Um tabu em casa, mas um espaço de acolhimento na escola
Bia, Lara, Luana e Pilar* estão inscritas na eletiva. Em um primeiro momento, a iniciativa não foi uma escolha de Bia e Lara. “Quando eu escutei gênero, achei que tinha relação com gêneros textuais, do português, mas, eu vi que não tem nada a ver”, disse Bia.
A mesma justificativa foi dada à reportagem por Lara. “No meu primeiro contato com a eletiva, eu vi que não era o que eu pensava. Eu não escolhi a eletiva, mas estou gostando dela. Falei sobre ela para Bia, que é muito feminista, porque achei a cara dela”, disse.
Parte das estudantes ouvidas pela reportagem se autodeclaram integrantes da comunidade LGBTQIA+ e destacam que a eletiva de ‘Introdução ao estudo de gênero’, oferecida na Erem Frei Caneca, tornou-se um espaço de acolhimento e acesso à temas que, muitas vezes, não são debatidos em casa. Das quatro discentes, três alegaram que não chegaram a comentar com os pais ou responsáveis que estão inscritas na disciplina. “Não falei para minha mãe, principalmente, porque ela tem uma filha da comunidade LGBTQIA+”, lamenta uma delas.
Estudantes que participam da eletiva na Erem Frei Caneca. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Se em casa o tema é encarado como tabu, na sala de aula, as adolescentes vivenciam um espaço de acolhimento. Já para as professoras, a eletiva também é um sinônimo de troca. “A gente também aprende com eles [estudantes], é uma troca. Muitas vezes, eu levo para a sala de aula um determinado conceito, mas, a partir das colocações deles, o debate toma outro direcionamento. Uma vez, Bia* trouxe um depoimento bem forte que norteou as discussões daquele dia da eletiva”, relembra Jéssica Pereira da Silva.
Professora Jéssica Pereira da Silva. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Após a fala da professora, Bia* relatou que desde cedo sentiu o peso do machismo e da violência doméstica. À reportagem, ela comentou que, durante a infância, foi abusada sexualmente pelo primo e também foi vítima de comentários machistas por parte do pai. ''Ele queria que eu cuidasse da minha avó, que é a mãe dele. Eu tinha 10 anos na época e ele nunca teve essa responsabilidade porque dizia que mulher dele e as filhas tinham que fazer tudo para ele, ser submissa. Falei umas coisas para ele e, a partir daquele momento, passei a morar com a minha mãe".
A adolescente conta ainda que, ao expor os episódios durante a eletiva, sentiu-se aliviada e percebeu também que não estava sozinha. "Quando eu relatei isso, percebi que outras colegas passaram por algo semelhante. Percebi que não estava sozinha". Atualmente, Bia* mora apenas com a irmã.
Mudança na comunidade escolar
Os debates promovidos na eletiva vão além da sala de aula. De acordo com Myllena Lyra, os efeitos desses dois meses da disciplina na Erem Frei Caneca refletem também na comunidade escolar como um todo. "É muito interessante que essas questões ultrapassam a sala de aula e chegam a todos os cantos da escola. Hoje, a gente já vê uma mudança de comportamento dos alunos, como também de professores. Muitos alunos da eletiva já promovem um diálogo, uma orientação quando percebem um discurso machista, homofóbico. Os professores estão revendo os discursos e posturas".
Atividade desenvolvida na eletiva leva a comunidade escolar a perceber o machismo na publicidade. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Ainda longe de ser o ideal, Myllena observa que debater gênero e sexualidades nas escolas não pode, por exemplo, ficar restrito à eletiva ou determinada disciplina. "Há tantas maneiras de se trabalhar o tema de forma transversal. Em matemática, a gente pode questionar os papéis de gênero. Por que Maria sempre está cozinhando, com uma boneca ou no supermercado e Joãozinho está jogando bola ou com bolas de gude?"
Apesar disso, para as estudantes, a eletiva é comemorada. "Se eu não tivesse essa eletiva, teria que buscar coisas na internet. Para mim, foi uma surpresa vê gênero e sexualidades em uma escola, principalmente, se tratando de uma escola pública. Eu acho importante e quero continuar nela", diz Luana.
*os nomes utilizados na matéria não são os reais para preservar as identidades das adolescentes entrevistadas.