O primeiro dia de aplicação da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, realizado no último domingo (17), foi marcado por denúncias de casos de constrangimentos a pessoas trans, na Região Metropolitana do Recife (RMR). Ao LeiaJá, duas mulheres trans denunciam a falta de sensibilidade quanto ao tratamento das participantes momentos antes do início do Exame e como isso impactou no desempenho na avaliação.
Tido como o mês da visibilidade trans, janeiro recebeu a edição 2020 do Enem, devido ao cancelamento de aplicação em novembro do ano passado, em razão da crescente nos números da Covid-19 no Brasil. Até o momento, são mais de 210 milhões de mortes. Apesar da importância desse mês para a população trans, e do tema da redação do Exame abordando questões relacionadas à saúde mental, os direitos básicos conquistados por essa parcela da população, segundo candidatas, seguem desrespeitados, o que, segundo elas, causa desestabilidade de ordem mental às participantes vítimas de constrangimento momentos antes da realização da prova.
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Há dois anos com todos os documentos de identificação retificados, a estudante Luana Maria da Luz Barbosa, 20 anos, relatou que mesmo com nome atualizado no sistema de inscrição do Enem, na ata da sala de aplicação de prova, o nome registrado na lista era ‘nome morto’. A participante realizou a prova em uma unidade de ensino superior, na área central do Recife. “Houve problemas, porque não estavam batendo os nomes. Daí o aplicador me levou até as pessoas que são responsáveis pelo departamento de aplicação de prova. E lá as pessoas não sabiam me dar informação se eu iria assinar como Luana ou com o nome antigo”, relatou Luana.
Segundo a estudante, a equipe ligou para o Inep para obter orientações sobre como proceder nessa situação. Após essa ligação, Luana recebeu a notícia de que teria que assinar o ‘nome morto’, assim como no cartão de confirmação de inscrição da estudante, que também não estava devidamente atualizado, tal como mostra na página do participante.
Luana assinou com o ‘nome morto’, despertando um sentimento de revolta diante da negação aos seus direitos. “Será que eu não posso passar por um processo de exame de vestibular, sem passar nenhum tipo de constrangimento? Sou sujeita a passar por esses tipos de violência de negações de direito?”, questionou Luana. “Meu sentimento é de revolta… É uma luta histórica”, enfatizou a estudante.
A estudante relatou que esse episódio potencializou uma situação de ansiedade. Isso, também levando em consideração, todas as preocupações em torno da prevenção contra a pandemia da Covid-19, no local de prova, que também impactaram no desempenho na prova. “Tive crise de ansiedade no meio da prova, fiquei bastante nervosa, mais ainda do que já estava com a pressão que essa prova tem sobre nós, estudantes, que vão prestar esse vestibular”, afirmou, emocionada, ao LeiaJá.
“Para nós, travestis e transexuais, é uma cobrança triplicada [em provas como essas]. Passei mal, durante e assim que terminou a prova, fiquei me sentindo tonta, sentindo como se tivesse feito uma péssima prova, sabe?”, relatou a estudante com a voz trêmula.
Insensibilidade social e desistência
Luana Maria, cria da comunidade do Ibura, localizada na Zona Sul do Recife, por um momento pensou em desistir de tudo. Ao LeiaJá, ela afirmou que não foi a única a passar por esse constrangimento e insensibilidade, problemas recorrentes contra pessoas trans. A participante presenciou quando outras duas meninas também passaram pela mesma situação de constrangimento, e uma delas desistiu de realizar a prova dado o impacto negativo causado pelo tratamento no local.
A reportagem do LeiaJá entrou em contato com as vestibulandas, mas não obteve retorno. No entanto, por meio de stories no Instagram, uma das candidatas afirmou que essa é “a última vez que precisei fazer o Enem, pois mesmo retificada tive que assinar e ser tratada por outro nome que não me pertence”.
Mesmo abalada, Luana realizou a prova e na redação disse ter que reforçar suas vivências com uma crítica ao constrangimento que ela e outras pessoas trans passam no “cistema” vigente. “O tema da redação é ‘O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira’. E é justamente o que eu passei, não é? Esse constrangimento. Essa irresponsabilidade social das pessoas contra nós”, pontuou Luana.
“Eu tive que falar um pouco das minhas dores. Dos meus sofrimentos na redação, não só o meu”, concluiu. Atitudes como essas afastam pessoas travestis e transexuais dos ambientes acadêmicos, em que são praticamente invisíveis, representando apenas cerca de 0,1% do total de alunos das instituições federais de ensino superior. Os dados são do levantamento realizado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), em 2018.
Posicionamento do Inep
O LeiaJá procurou o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para obter um posicionamento diante do caso denunciado pelas estudantes. No entanto, o Inep não deu uma resposta objetiva aos ocorridos.
Responsável pela organização do Enem, o órgão apenas orientou que os estudantes que se sentirem prejudicados por "problemas de logística" podem solicitar “reaplicação do Exame em até cinco dias após o último dia de aplicação”, por meio da Página do Participante.
No próximo dia 24 de janeiro serão aplicadas as provas de matemática e Ciências da Natureza, na modalidade impressa. Já as provas da versão digital estão marcadas para os dias 31 de janeiro e 7 de fevereiro. Confira, a seguir, na íntegra, o posicionamento do Inep sobre o caso:
O edital da versão impressa do Enem 2020 já prevê que: “O participante afetado por problemas logísticos durante a aplicação poderá solicitar a reaplicação do Exame em até cinco dias após o último dia de aplicação, no endereço. Os casos serão julgados, individualmente, pelo Inep. São considerados problemas logísticos para fins de reaplicação, fatores supervenientes, peculiares, eventuais ou de força maior, como: desastres naturais (que prejudiquem a aplicação do Exame devido ao comprometimento da infraestrutura do local), falta de energia elétrica (que comprometa a visibilidade da prova pela ausência de luz natural), falha no dispositivo eletrônico fornecido ao participante que solicitou uso de leitor de tela ou erro de execução de procedimento de aplicação pelo aplicador que incorra em comprovado prejuízo ao participante. A aprovação ou a reprovação da solicitação de reaplicação deverá ser consultada pelo endereço enem.inep.gov.br/participante.” O participante que se sentiu prejudicado deverá relatar o ocorrido. O Inep receberá os pedidos por reaplicação entre 25 e 29 de janeiro, pela Página do Participante do Enem. O Inep, junto às aplicadoras, vai apurar a situação e avaliar o pedido. A reaplicação do Enem, prevista em edital, será nos dia 23 e 24 de fevereiro, mesma data e com a mesma prova aplicada para pessoas privadas de liberdade, o chamado Enem PPL. Trata-se de uma nova prova, com mesmo nível de dificuldade, possível pelo fato de o Enem adotar a metodologia de Teoria de Resposta ao Item (TRI). Todos os anos o Inep prepara duas provas: a regular e a de reaplicação/PPL. Este ano, com o Enem Digital, foram preparadas três provas.
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